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Sentindo-se encorajado por estes pensamentos, o rei enrijou a silhueta, deitou para
trás aquilo que não conseguia desvendar e numa voz forte chamou pelo reposteiro:
Gonçalo! Gonçalo! O chamamento, dito em tons que ecoaram pelo Paço, chegou ainda
audível aos ouvidos do infante Fernando, que nesse momento se preparava para
abandonar o terreiro da casa apalaçada. Pressentindo pela tonalidade da voz o anúncio
de uma tempestade, o infante apurou o ouvido, pensando poder distinguir as palavras
que Duarte trocou com o servidor, mas o que escutou não lhe permitiu decifrar o
recado que o pensamento do irmão privilegiou: ide já ligeiro ao encontro do infante
Henrique. Dizei-lhe da urgência do seu conselho e que o espero sem demora em Lisboa,
para onde seguirei. Desorientado pela complexidade de um assunto que lhe desordenava
as ideias, o rei esqueceu-se de que a precedência entre os irmãos começava em Pedro
e não em Henrique, ligação que, por ser irreflectida, trará consequências.
Honestamente
submerso pela governação, o rei Duarte I não deu a princípio pelas manobras.
Mas algumas manifestações alertaram-lhe o pensamento, sentindo grande necessidade
de decifrar o que se passava. Não era de especulações, mas, roído pelo
pressentimento, mandou alguém remexer nos grupos que fugiam ao seu controlo. Que
não! Tudo estava calmo no reino de sua majestade, não havia motivos para alarme.
Descansasse, nada temesse, porque os nobres respeitavam-no, a Igreja temia-o e
o povo amava-o. Duarte descansou, como o aconselharam. Eis senão, sem aviso, entra-lhe
o irmão mais novo pelo sossego adentro. Desarruma-lhe a casa que tem dentro da cabeça,
provoca-lhe sentimentos violentos, assegura-lhe que as suspeitas vão além disso.
Apreensivo, receia o pior. Não sabe onde o enredo o leva, se será ele o vencido
ou, pelo contrário, se vencerá. Desconhece a origem, mas fica persuadido de que,
se existe uma maquinação, só pode ser gerada por um grande nobre com influência
na corte e no reino.
Duarte
I infernizava-se por não estar na posse de todos os dados e, apesar de ser conhecedor
de um circuito de intenções, continua sem saber quem atirou o irmão mais novo para
a frente. Incomodado, estica até ao limite o cérebro, à espera que uma lufada
de siso lhe fertilize o pensamento. Enquanto cruzava mais uma vez o compartimento
de ponta a ponta, veio-lhe ao pensamento a imagem do infante Henrique, uma representação
visual precipitada, um condicionamento virtual que o juízo lhe enviou para
resolução. Subjugado pela áurea do homem cuja forte energia psicológica e física
o impressionava, cedeu sob a imagem que lhe oferecia as devidas soluções e nenhumas
dúvidas. Mais uns passos para lá, outros tantos para cá, conta Duarte. No momento
em que me ocorreu chamar por Henrique, fui levado por uma força desconhecida, atraído
por uma imagem obsessiva, pois vi nele o homem sério, honesto, fiel à Coroa, sem
pôr em dúvida as suas virtudes nem sobrevalorizar os defeitos.
A confiança
no irmão Henrique era total, tanto quanto o afeiçoamento que lhe devotava sobrelevava
os defeitos. Sentiu-se manietado por uma força de atracção que o prendeu a este
irmão, e de nada lhe valia exercitar o juízo à procura de outras soluções, porque
não conseguia libertar-se do íman que o atraía. Por que pensamento, por que razão
vai Duarte encontrar-se com Henrique, se Pedro é mais velho do que ele, mais versado
na política, mais cosmopolita, mais reflectido, o seu irmão preferido, como gostava
de dizer. Porquê, por que encargo este rei inteligente foi atrás de um impulso,
quando uma das suas mais pronunciadas características era a ausência de arrebatamentos?
Há coisas para as quais não vale a pena procurar explicação». In
Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da
Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.
Cortesia de Cdo
Autor/JDACT