jdact
Ano
de 1229. Basílica Menor de Seligenstadt
«(…)
Semelhante poder colocava-o acima de qualquer outro bispo, prior ou abade, e em
todos suscitava um verdadeiro temor reverencial. Gerhard von Lützelkolb olhou em
redor, aconchegando-se no casacão de lã que usava por cima da sotaina. Dava a impressão
de procurar uma fonte de calor que, no entanto, não encontrara. Nesta sala
gela-se. O gelo purifica, rebateu o religioso com uma nota de reprovação. O frade
mordeu a língua. O rigor de Von Marburg era bem conhecido. Muito bem, magíster.
O que ordenais? Konrad fez-lhe sinal para que esperasse. Deu uma última leitura
às cartas, depois fechou-as com cera e estendeu-lhas. Devem ser enviadas rapidamente,
peço-vos. Os estafetas já estão prontos para partir. Gerhard sopesou os dois
envelopes, hesitante. As mãos tremiam-lhe, uma estranha luz faiscava no seu
olhar.
Konrad
perscrutou-o com atenção. Era hábito não deixar escapar nada, nem o mínimo pormenor.
O que vos atormenta?
Antes
de responder, o franciscano emitiu uma espécie de estertor. Aconteceu uma coisa
terrível, magíster. Explicai-vos. Têm que ver com o clérigo Wilfridus, o herético
que acabastes de interrogar. E então? Mandei-o fechar na cela até ser enforcado.
Não será preciso. A boca de Gerhard torceu-se. Já está morto. Konrad cerrou os punhos
de encontro ao peito. Mas como... Os guardas encontraram-no coberto de
queimaduras, foi esse o motivo do meu atraso. Queimaduras terríveis, causadas por...,
qualquer coisa que se lhe cravou nas costas. O frade hesitou. A cela tresanda a
enxofre. E ninguém viu nada? Não, mas... Como é que uma coisa dessas pode ter acontecido?
É impossível alguém entrar naquela cela. A janela que dá para o exterior é demasiado
estreita para dar passagem a um... Um homem? Konrad bateu-lhe com a mão nas
costas, sorrindo melancolicamente. Aí está o sinal que esperava, pensou. Antes de
falar experimentou o sabor das palavras. Não temais dar voz aos vossos pensamentos,
meu amigo. Esta noite, o Maligno cavalga por estas terras.
Gerhard
fez o sinal da cruz, como se quisesse proteger-se de uma maldição. Ide! Mandai entregar
essas cartas, Konrad apressou-o. E rezai para que o Senhor nos dê forças. Depois,
apesar do frio intenso, foi de novo até à janela e abriu as portadas de par em par.
Precisava de olhar para fora, de procurar no escuro. O vento entrou pelos seus aposentos
fazendo um silvo e apagando a chama da vela. A obscuridade da noite, densa como
o alcatrão, submergiu todas as coisas.
O signo
do sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
“Não
deverá temer nem mesmo o diabo, que é o ferocíssimo Sagitário, armado de flechas
incandescentes, constante causa de temor para os corações de todo o género
humano. Zenão Verona, de Duodecim Signis ad Neophytus”
Suger
ainda olhou para trás. Alguém o perseguia. Era uma figura imponente, envolta num
manto esfarrapado. Vira-o minutos antes, ao descer da colina de Sainte-Geneviève
na direcção da Cité, e temendo uma agressão, decidira apressar o passo. Além desta
presença, não avistara mais ninguém ao longo da estrada, apenas uma imensidão de
ratazanas e de lixo. Por todo o lado só se via porcaria, em boa parte, restos das
borgas de Carnaval. Pôs o capuz da capa para se proteger do frio e depois de andar
um pouco virou-se para verificar o que se passava atrás de si. O homem do manto
estava cada vez mais perto... Se não tivesse sido o abade de Saint-Victor a mandá-lo
chamar! Suger ensinava no Studium como magister medicinae, mas não era suficientemente
rico para recusar uma visita a um doente depois do pôr do sol, sobretudo se os pacientes
pagassem bem. Além de uma infusão de segurelha e de uma cataplasma para os pés
inchados, o velho abade exigira-lhe uma boa dose de paciência. Suger detestava as
lamentações dos velhos e, cada vez que encontrava esse tipo de pessoas, lamentava
não ter escolhido o ofício do pai, que construíra vitrais de catedrais durante mais
de quarenta anos». In Marcelo Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do
Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
Cortesia de CdoAutor/JDACT