segunda-feira, 6 de março de 2017

Os Caçadores de Livros. Raphael Jerusalmy. «François, estupefacto, apercebe-se de que a pedra vermelha, espessa e bem polida, aumenta cada pormenor da página»

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«(…) Atira uma citação judiciosa à cara de um rival eminente como quem atira uma faca a um alvo de palha. Com certa desenvoltura, mas acertando em cheio. E sempre de surpresa. Não foi através das suas leituras que adquiriu essa técnica. Apurou-a no decorrer de numerosas rixas e brigas de viela. Batendo-se com adversários pelos quais, ao contrário do que se passa com os cortesãos e os clérigos, experimentava estima. Fust, seja como for, não se deixa impressionar. O que o favorece um pouco aos olhos de François. O velho instala-se no seu lugar com à-vontade, poisando o bastão no chão com um gesto negligente, descalçando tranquilamente as suas mitenes. Traz no dedo, contrastando com toda a sua indumentária tão austera, um anel rutilante engastado de um rubi simplesmente polido. O ouro mate do anel tem cinzelado um dragão cujos olhos minúsculos em pedra do Reno cintilam ardorosamente. As garras do monstro prendem solidamente a gema central. Um filete de esmalte flamejante irrompe-lhe das goelas abertas. Sem deixar a sua posição agachada, François abre o alforge e extrai uma obra do seu interior. Um relâmpago atravessa o olhar de Fust. As suas faces escavadas, o seu nariz adunco têm um súbito alerta de ave de rapina. François não estende o suficiente a mão, obrigando o ourives a debruçar-se demasiado, a ponto de quase cair da cadeira. Fust, curvando-se profundamente, logra alcançar o volume.
Apodera-se dele com uma patada lesta e, a seguir, sem hesitar, poisa o dedo sobre o nome estampado na capa: Kyonghan. O autor, ao que presumo? François adivinha que o seu interlocutor sabe a resposta. Aquiesce com um leve meneio da cabeça. Fust esforça-se por manter o seu sangue-frio. Vira as páginas com um ar desprendido. Ínfimas gotas perlam a sua fronte sulcada de rugas. Começara por recear que aquela edição do Jikji Simhyong tivesse sido impressa por meio de caracteres de terracota ou de porcelana. Mas trata-se realmente da de 1377, composta na Coreia por meio de tipos móveis de metal. Possui já um exemplar seu, que lhe levou, há quinze anos, a Mogúncia, um judeu vindo da Terra Santa. Fust sentira-se surpreendido pela qualidade da tinta, pela nitidez da impressão e, sobretudo, pelo refinamento das letras. O judeu queria saber se Fust, uma vez que era ourives, seria capaz de reproduzir a liga dos tipos coreanos e se o seu genro, Petrus Schoeffer, e o seu sócio Johannes Gensfleisch, dito Gutenberg, poderiam fabricar uma máquina que permitisse a utilização dos caracteres assim obtidos.
A prensa original seria demasiado frágil para uma impressão em papel chiffon, cuja relutância à tinta é maior do que a dos delicados papéis da China. O juiz pagara um adiantamento em dinheiro e prometera fornecer, a título de recompensa suplementar, textos raros e inéditos para as primeiras experiências. Johann Fust poisa o livro e pede para ver um manuscrito cuja descrição o deixou perplexo. François revolve de novo o interior do saco e extrai dele um rolo de papel corroído pelo tempo. A caligrafia é pesada e cheia de erros. Trabalho despachado à pressa de um copista sobrecarregado de encomendas? Não, o velho livreiro não se deixa induzir em erro. Tira o anel e, com um dedo, prime com força a cabeça do dragão cinzelado. As garras de ouro retraem-se prontamente, libertando a gema não facetada. Fust retira o rubi do engaste em que está embutido e fá-lo assentar sobre o pergaminho. Debruçando-se sobre este, desloca lentamente o precioso mineral ao longo da página, comprovando que o velino foi raspado. François, estupefacto, apercebe-se de que a pedra vermelha, espessa e bem polida, aumenta cada pormenor da página.
Fust não consegue reprimir um sobressalto. Entre as linhas desastradamente traçadas, detecta os contornos esbatidos de letras aramaicas. Não foi, por conseguinte, para recuperar o pergaminho que o copista o raspou com uma lâmina, mas para camuflar os caracteres originais, inscritos na pele com um estilete e dissimulados depois pela tinta espessa de um texto anódino. É assim que os judeus disfarçam as obras que querem salvar das fogueiras da Inquisição (maldita). Trata-se de um processo fastidioso ao qual só se recorre no caso de escritos talmúdicos ou cabalísticos da maior importância. No tempo das cruzadas, os cavaleiros transportavam, sem o saberem, essas obras disfarçadas de piedosos breviários. Julgavam estar a repatriá-las de Jerusalém para Avinhão ou Frankfurt, nem por um instante suspeitando que serviam, na realidade, de correios aos rabinos dessas mesmas cidades». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.

Cortesia de CAutor/JDACT