terça-feira, 7 de março de 2017

Os Caçadores de Livros. Raphael Jerusalmy. «A sua aparência desleixada contrasta com a elegância natural da sua postura e o refinamento discreto dos seus gesto»

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«(…) Bastava, em seguida, dissolver a máscara de tinta para deixar à luz do dia a cópia secreta. Hoje, são os recoveiros de Fust que asseguram, por seu turno, e com toda a candura, a distribuição de obras clandestinas, astuciosamente mascaradas de saltérios ou escritos rituais o mais católicos possível. Examinando de novo a lista com ar entendido, Fust pergunta-se se não terá sido atraído a uma cilada. Só entre os poderosos há alguém em condições de reunir tantas raridades. As que aqui se contam valem uma fortuna! A menos que se trate de obras confiscadas pelos censores. Nesse caso, Villon seria um agente da justiça e não um correio. Um comerciante discute a soma a acordar, as modalidades do pagamento, os prazos de entrega. Ora, nenhum preço foi mencionado ainda. O velho observa a singular personagem sentada no chão que tem à sua frente. Agachada no meio de um amontoado de encadernações e de rolos de pergaminho, como se vendesse legumes no mercado. Mas os belos livros são-lhe manifestamente familiares. Manipula-os com destreza. A sua aparência desleixada contrasta com a elegância natural da sua postura e o refinamento discreto dos seus gestos. A franqueza do seu olhar seria de molde a suscitar a confiança de Fust se a não comprometesse um brilho matreiro. Um ténue trejeito, que lhe vinca a todo o momento o canto dos lábios, exibe um descaramento que ele não procura de maneira alguma dissimular. Este rapaz não perde tempo com as maneiras e esgares costumados. Não faz teatro. Pelo contrário, é Fust que se sente na berlinda, avaliado, posto à prova. O outro desafia-o com o seu sorriso que não é, convidando-o a entrar em liça, mas sem o forçar inteiramente a fazê-lo. A curiosidade acaba por levar a melhor sobre a prudência. Posso fazer-vos uma oferta? O vendedor não quer dinheiro. O impressor de Mogúncia crispa-se da cabeça aos pés prestes a dar às de vila-diogo, mas Villon sossega-o com uma leve palmada no braço. Os cantos da boca franzem-se mais marcadamente, acentuando-lhe a expressão maliciosa do rosto.
Em contrapartida, está disposto a oferecer-vos a título gracioso todos estes volumes em troca dos vossos bons serviços. Apanhado de surpresa, o alemão balbucia. Villon expõe sem mais delongas o desejo que anima Guillaume Chartier de enriquecer a sua diocese com uma oficina de impressão e algumas obras inéditas. Evita mencionar o rei para não assustar a sua presa. Fust faz contas rapidamente, hesitando todavia em concluir um negócio que lhe parece demasiado aliciante para não esconder uma armadilha. Pede tempo para reflectir, consultar os seus sócios, obter garantias, mas é evidente que já só tem uma ideia na cabeça: deitar a mão aos livros amontoados aos pés de François. O velho livreiro despede-se, prometendo dar em breve a sua resposta. Assim que o vê sair do aposento, Colin pula de alegria, François continua sentado. Guarda os preciosos volumes no seu alforge, sem nada dizer. Não experimenta um sentimento de vitória. Custa-lhe ser agente de Guillaume Chartier, obedecer docilmente às instruções deste eclesiástico hipócrita e falso. E, sobretudo, custa-lhe trair os livros.

O bispo de Paris atravessa a calçada soltando imprecações e vociferando, saltitando para evitar as poças de água. Dois clérigos encapuçados trotam-lhe à ilharga, tentando em vão abrigá-lo da chuva por meio do pano de um pálio que o vento torce e sacode em todas as direcções. As valetas da rua Saint-Jacques arrastam lama e detritos que o prelado enojado repele a golpes de báculo episcopal. Johann Fust precipita-se para abrir a porta da sua nova loja, enquanto o seu genro, Petrus Schoeffer, com uma escova na mão, se apresta a limpar com ela a mitra salpicada.
Assim que entra, Sua Excelência Reverendíssima tapa o nariz. Um odor rude de tinta e de suor provoca-lhe uma náusea. Fust manda que se interrompa o martelar dos maços e ordena silêncio aos seus artesãos. Villon, assentando os cotovelos sobre uma prensa móvel, sorri com um prazer malicioso. Mantém-se à parte, observando o esgar autoritário do sacerdote, as mímicas obsequiosas de Fust, os trejeitos de aflição dos aprendizes, como se todos eles se esforçassem por se adaptar da melhor maneira à personagem que encarnam». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.

Cortesia de CAutor/JDACT