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«Enquanto
a água se pode guardar em garrafas, as histórias não podem ser engarrafadas sem
que se estraguem rapidamente. Têm de andar ao ar livre como os animais
selvagens. Temos de as soltar para que possam correr todas nuas. Sors nasceu em
23 de Novembro de 1895. Foi ele quem, em 1940, pintou o quadro que está
pendurado na entrada de uma casa da Rua do Alto da Fonte, na Figueira da Foz.
Essa entrada é um espaço relativamente pequeno, com uma arca de madeira do lado
direito, mesmo por baixo do quadro pintado por Sors. Em frente há um relógio de
pé, um móvel de canto e o bengaleiro feito de metade de uma hélice. Há uma
serra de peixe-serra na parede do lado esquerdo, estatuetas africanas, quadros,
bengalas, lanças indígenas, máscaras, objectos indecifráveis, pratos pintados.
Em cima da arca há algumas presas de elefante e um dente de hipopótamo. O
dente, propriamente dito, é grande, mas a raiz é muito maior. Muito da
eficiência daquilo que fazemos, daquilo que mastigamos, depende sobretudo do
que não se vê. Das raízes. É por isso que estou a contar esta história. Porque
são as coisas que estão dentro de nós e em que ninguém repara quando nos olha.
Temos uma paisagem muito grande que não se vê, a menos que nos debrucemos para
dentro e mostremos aquilo de que nos lembramos. Nada é tão forte como as coisas
que não se veem, como as raízes do dente do Behemot. Como um pintor debaixo de
um lava-loiças.
Todos
os jardins da nossa infância são o jardim do paraíso. A pele suave desses
tempos em que se corria com as pernas arqueadas soltando uma espécie de luz
pela respiração. Ríamos a correr para os braços dos adultos numa entrega
absoluta. Eles, os adultos, atiravam-nos ao ar e apanhavam-nos com mãos
ásperas, e, talvez por isso, quando crescemos nunca mais deixamos de,
esporadicamente, sonhar que voamos. E de sonhar com gigantes e anões, pois eram
essas as nossas proporções. Jozef Sors nasceu numa grande casa onde os seus
pais trabalhavam. A propriedade pertencia a um coronel do exército chamado
Möller. Nas traseiras havia um grande jardim cheio de flores, cercado por um
muro alto, todo em pedra. A mãe de Jozef Sors era engomadeira e o pai era
mordomo. Enquanto a mãe era uma figura sem protagonismo, baixa e simpática, com
maçãs do rosto salientes, o pai era um homem muito especial. Não havia ninguém
tão sincero quanto ele. Ignorava por completo qualquer civilidade e dizia exactamente
o que sentia e via. Quando o filho nasceu, mal a parteira lhe havia cortado o
cordão umbilical, exclamou: parece um rato. A parteira, que se chamava Marija,
olhou-o de lado e mandou-o sair, mas o mordomo quis pegar-lhe ao colo. Estava
enternecido e chegou mesmo a passar a mão pelos olhos para os limpar. Os seus
braços enormes faziam com que o recém-nascido parecesse ainda mais pequeno.
Parece mesmo um rato, dizia ele enquanto lhe acariciava a bochecha com o
indicador da mão direita. A senhora Sors sorria de cansaço, com as maçãs do
rosto maiores do que era habitual. Marija tirou o bebé das mãos do mordomo e
pô-lo nos braços da mãe para que ele mamasse. Quando o bebé adormeceu, Marija
comentou que era um belo rapaz, forte como a água do mar e saudável como a água
da chuva. O olho esquerdo, que parecia uma lua minguante, revelava que iria ser
um artista. Como os do circo?, perguntou o mordomo.
Não,
como os outros. A senhora Sors começou a soluçar quando ouviu isto, pois não há
nada mais triste do que ser um artista e olhar para o mundo como se o visse
pela primeira vez. Quem lhe disse isso?, perguntou a parteira. Foi um amigo do
coronel. Um escultor que veio um dia cá a casa. Parece-me uma grande felicidade
que, quando se olhe para o mundo, pareça sempre que é a primeira vez que o
fazemos. É uma grande tristeza, disse ela a soluçar. É a maior infelicidade.
Eu, quando olho para as coisas quero que elas me sejam familiares, como o meu
tio e o meu marido, como o pão que se come às refeições. Quero deitar-me sempre
com o mesmo homem, com os mesmos lábios. Quero que os lençóis de hoje me
pareçam os lençóis de ontem, mesmo que os bordados sejam completamente
diferentes. Não quero que os beijos que recebo sejam novos, quero que sejam
velhos, quero que sejam os de sempre. Não me quero sobressaltar como quando era
jovem. Uma pessoa só pode ter paz quando está ao pé das mesmas coisas, quando
nem repara nelas, porque elas já fazem parte de si, como se as tivesse comido e
mastigado e engolido e agora fossem carne da sua carne e sangue do seu sangue.
Só somos felizes quando já não sentimos os sapatos nos pés. E ao dizer isto
adormeceu». In Afonso Cruz, O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, Editorial Caminho,
colecção Romance Adulto, 2011, ISBN 978-972-212-615-1.
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