quinta-feira, 2 de março de 2017

O Manuscrito nos Confins do Mundo. Marcelo Simoni. «Face a estas evidências, peço licença para alargar as indagações a sul da coroa alpina, onde, de acordo com o interrogatório, se esconderá a seita mais importante fundada pelo magíster de Toledo»

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Ano de 1229. Basílica Menor de Seligenstadt
«A Aurosa hesitava, sufocada por uma noite impenetrável. Uma noite que iria durar eternamente. Na basílica carolíngia, num aposento longe do dormitório, Konrad von Marburg, encostado à janela, observava a paisagem vestida de escuro, imóvel como um cão perdigueiro após ter farejado a presa. Esperava qualquer coisa, um sinal, uma visão, e no seu coração não sabia se ela se iria manifestar aos seus olhos ou se no mais íntimo da sua alma. Já intuíra, todavia, do que se tratava. Depois de trinta anos de orações e de exorcismos, estava certo de que não se enganava. Percebera-o como um som saído das trevas, o grito de um corcel. E estava pronto para o combate. Semicerrou as pálpebras desprezando o ar gélido que lhe açoitava o rosto. O vento norte sibilava, furioso, pelos campos e pelas ruas. Carícias de uma natureza madrasta, dádivas de um Inverno que pressionava a Turíngia e a Renânia como um torno gélido. Aí via uma advertência, uma antecipação do que o esperava. Porque ele, Konrad von Marburg, conseguira descobrir a trama do Maligno nos feitos humanos.
Fiat voluntas tua, ruminou, inclinando ligeiramente a cabeça. Fechou as portadas e voltou para os seus aposentos envoltos em penumbra. Em cima de uma escrivaninha esperavam-no duas cartas, uma escrita em alemão, a outra em latim. Escrevera-as durante a noite, quase de uma penada, e deixara-as em cima do tampo para que a tinta secasse. A situação era deveras grave. Dentro de algumas horas um estafeta partiria para as entregar. A primeira destinava-se ao landgrave da Turíngia, o senhor daquelas terras; a segunda, a Sua Santidade em pessoa, o papa Gregório IX. O conteúdo era quase o mesmo, tendo apenas ligeiras variações quanto às fórmulas de tratamento e encómios. Konrad sentou-se à escrivaninha e pegou na carta escrita em latim para a reler à luz de uma vela. Tinha consciência de ter viciado o texto com alguns germanismos, mas sabia que não devia preocupar-se com isso. Quando ainda não era papa e respondia pelo nome de Ugolino Anagni, Gregório IX viajara como legado apostólico pela Germânia, pelo que estava perfeitamente habilitado a compreender a língua alemã. O texto dizia:

“Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Sua Santidade o papa Gregório, bispo da Igreja Católica e servo dos servos de Deus, o abaixo-assinado Konradus Marburc, predicator verbi Dei, reporta os resultados das suas indagações sobre a corrupção herética que infecta a Germânia. No mês de Janeiro do ano corrente, dirigi-me à diocese de Mogúncia para visitar a casa de um clérigo suspeito de heresia chamado Wilfridus, e nesse lugar encontrei traços inequívocos das evocações do Maligno. Tendo tomado nota dos muitos indícios de necromancia que pude identificar, mandei prender o clérigo e por fim submeti-o a um interrogatório. Apesar de me encontrar frente a um religioso e não a um simples laico, levei a cabo a minha missão com firmeza. O interrogatório provou que mentia, como é habitual fazer quem pretende esconder a própria culpa, depois acabou por confessar que venerava uma trindade herética mais antiga do que a cristã, que suspeito ser Lúcifer no momento de se antepôr à Santíssima Trindade. Como prova de tais suspeitas, Wilfridus segurava na mão direita o sinal do pacto com o Maligno, que por decência e temor a Deus me recuso a descrever a Vossa Santidade. Mais grave ainda, o interrogado confessou ter sido iniciado neste culto blasfemo por um magíster de Toledo. Descreveu-o como um homem alto, magro, vestido de escuro, mas jurou que não sabia o seu nome. Eu, porém, com base nas indagações precedentes, sei muito bem de quem se trata. É o Homo Niger, o Hontem Negro que frequentemente se manifesta aos heréticos durante os seus torpes conciliabos. Face a estas evidências, peço licença para alargar as indagações a sul da coroa alpina, onde, de acordo com o interrogatório, se esconderá a seita mais importante fundada pelo magíster de Toledo. E uma vez que os sequazes desta seita se entregam às mais aberrantes heresias, ou mesmo ao culto de Lúcifer, peço que estes Luciferianos sejam fulminados pelo anátema e castigados pela vara da Santa Igreja Romana”.

Ouviu-se um ruído, um arrastar de sandálias proveniente do corredor próximo. Konrad levantou os olhos do papel e ficou à espera, até que viu um homem aparecer à porta. Era um franciscano com uma grande tonsura emoldurada por uma auréola de cabelos eriçados, com o rosto iluminado por dois olhos de asceta. Gerhard von Lützelkolb, meu amigo. Von Marburg levantou-se e abriu os braços. Estava mesmo a pensar nas vossas indagações. O frade fez uma ligeira vénia e inspirou profundamente várias vezes seguidas. Devia ter vindo a correr. Demorei, magíster. Perdoai-me. Magíster. Konrad era chamado magíster havia cerca de dois anos, desde que o Santo Padre lhe confiara uma missão de grande relevância, um sinal indubitável de afeição, mas, simultaneamente, um terrível fardo. Até então, jamais alguém fora encarregado de investigar a heresia com a finalidade precisa de a estripar a qualquer preço». In Marcelo Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.

Cortesia de CdoAutor/JDACT