sexta-feira, 31 de março de 2017

No 31. A Paixão segundo Constança H. Maria Teresa Horta. «Talvez um dia me internem. Uma mulher para ser amada tem de ser amável, diz-se. Alguma vez serei eu amável? Viável... Viável?

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«(…) Que loucura? Que excesso? Tenho a sensação de que me impelem, me empurram até ao fim do caminho que tenho atrás das minhas costas. Ao fim-fundo desse caminho encontra-se o abismo. O suicídio? Há uns séculos queimavam-nos..., depois passaram a internar-nos. Foi o que fizeram à minha mãe. Provavelmente será o que me farão um dia a mim. Caminho, pois, para a minha própria execução? Talvez morra do meu próprio excesso. E do ódio, que se agacha no meu peito desde criança. Só assim consegui sobreviver. Os animais foram, então, o único calor, o único afecto. Cheiro ainda a palha quente da urina dos estábulos dos cavalos. O ligeiríssimo vapor que se escapava, quase noite, dos seus corpos, das suas narinas, da sua boca enquanto mastigavam. Muitas vezes dormia; adormecia, entorpecida, a tentar esquecer o mundo que lá fora me esperava.
Foi quando quis deixar de me lavar. Lambia a cal das paredes e dos muros e pela tarde fora mastigava terra que engolia quando ficava uma pasta, misturada a terra com a saliva, a fazer arder os olhos de tão amarga. Talvez mora do meu próprio excesso. Andava pela casa de mãos atrás das costas para não fazer tombar nada, para me portar bem, com o fito de me amarem. Mas isso foi antes. Antes de a mãe ter saído de casa e de a avó ter morrido quase logo depois, a fazerem as duas, este buraco na minha vida.
Penteava os cabelos da minha irmã, a fingir que eram os meus: enriçados, endurecidos, que não deixava tocar. Um dia disseram-me: a tua mãe deixou-te por um homem, deixou o teu pai por outro homem, é uma pu… a tua mãe. E eu caí para o chão, a gritar.
As mãos a taparem os ouvidos, tentando não ouvir os gritos que soltava, rebolando-me pelo chão encerado da sala. O pai veio à correr levantar-me do chão e levou-me nos braços para o quarto, mas eu não me lembro de nada. De mais nada. Talvez um dia me internem. Uma mulher para ser amada tem de ser amável, diz-se. Alguma vez serei eu amável? Viável... Viável? Schelling escreveu: como avaliar a viabilidade? Por que razão ser viável é um bem? Por que razão durar é melhor que arder? Da última sessão da análise, saí com este gosto a cinza na boca... Sei que é difícil o trato com os meus medos, os meus fantasmas, as minhas obsessões. Com o meu imaginário?
Sim, olhei a raiva nos olhos da minha mãe. Quantas vezes? Nem ela se lembra quantas... Tantas! A ultima vez que os enfermeiros a levaram, tinha uma camisa-de-forças vestida, os braços cruzados sobre os seios, achatados pelo pano repuxado por atilhos nas costas. Tinham-lhe dado uma injecção, mas, quando a levaram, gritou. Olhou para mim, ali parada, as tranças escorridas sobre as alças largas do bibe, e gritou. Será isto olhar a loucura nos próprios olhos? Os dela pareciam ainda mais azuis quando me fitou, fixamente. O olhar fixo e branco, como se branqueasse os afectos, o fogo que pertencia a nós duas; que eu levara até ela através do meu nascimento. Um mal congénito? Talvez um dia me internem». In Maria Teresa Horta, A Paixão segundo Constança H., 1994, Bertrand Editora, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-252-242-7.

Cortesia de BertrandE/JDACT