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Carta III
«(…) É o Desejo que irmana a
concubina da mulher honesta, o pobre do rico, o bom do mau. Acaso a alcova de
uma honesta não tem visto bastantes prostituições? Há rameiras que são mais
sóbrias e mais recatadas ao entregar-se do que a mais honesta das mulheres. Cada
criatura tem latente em si uma Sodoma. Todos nós somos iguais. Filhos da
Luxúria, escravos do Gozo, servos do Interesse. Iguais no nascimento e iguais
na morte. Um fidalgo nasceu tão desastradamente como um moço de restaurant. Ninguém diferenciará na
morte um cardeal do seu criado, um cabeleireiro de um palhaço, uma florista de
uma arquiduquesa. Não somos acaso todos irmãos, ó meu irmão canalha? Da mulher
do salão à mulher do esgoto há uma só diferença: a cama. A da primeira terá uma
coroa bordada no travesseiro. A da segunda será a cama de uma hospedaria onde
todos passaram, dormiram, que de todos foi usada. A primeira terá meias da
Escócia, mitenes de Suède, perfumes de Circássia. A segunda nem às vezes terá
meias, terá as mãos calejadas e grosseiras e cheirará a arrotos e suores. O amor
da primeira é uma coisa leve como um Watteau, delicado como uma porcelana cara,
magnífico como uma renda antiga. O amor da segunda é uma mancha, brutal como um
soco ou um borrão. Não é verdade que uma rameira se entrega a um ladrão e uma
açafata a um príncipe? Mas há marquesas que prostituem os cocheiros, condessas
que levam murros do criado, servilhetas que são as baronesas dos barões. Pensa
bem. Não há crime nenhum que não tenha saído de um ventre de mulher, nem que
uma cova não contenha. Uma mulher? Mas o que é uma mulher? A mulher é o gozo.
Tira-lhe a formosura e o que te fica? Nada.
Mulheres
honradas? Nem a tua mãe! (?) Tu sabes quantos adultérios praticou a tua mãe
para com teu pai! Nenhum. O que nunca, nunca tu me poderás dizer é quantos ela
pensaria em praticar. Para seres feliz no Amor precisas de ser como na Vida:
egoísta, seco e mau. Se não fores infame serás imbecil. Se fores romântico,
sonhador e amoroso, elas inventarão para crucificar a tua paixão mil laços
traiçoeiros, mil enganos, mil atrocidades. Se estimares a tua mulher serás
atraiçoado por ela, como se estimares a tua mãe ela te difamará. Sê orgulhoso?
Uma mulher? Há tantas mulheres por esse mundo! Um amor? Tantos amores virão
substituir este. As mulheres ou se castigam ou se desprezam. E se desprezares a
tua amante, ela inventará carícias mil para te apaixonar, te agradar, te
satisfazer. A sua boca ardente carregada de beijos como uma árvore carregadinha
de flor, tatuará no teu corpo uma legenda extraordinária de dedicações e de
carícias. Sê pois canalha com as mulheres (??), que elas gostam dos
infinitamente canalhas. Eis o dilema: beijava os pés à minha mulher e ela
atraiçoava-me, bato-lhe e ela adora-me.
No Amor, como na Vida, de quem é o triunfo? Dos
fortes, dos que mentem, dos que batem, dos que falseiam.
Se queres ser feliz sê, como eu, brutal na posse, canibal na ambição, sem uma
aresta de apego a uma alma, pisando sempre, avançando sempre, crânio de sílex
na energia, coração de sílex nas dedicações e nas torpezas. O Amor faz tantos
crimes como a guerra. Foi por amor que a minha vizinha fronteira despedaçou do
quarto andar o corpo na calçada. Que este homem se deitou nos rails à passagem do
comboio. Que aquela costureira tomou fósforos e está no hospital. Que estoutra se
meteu a freira. Que esta afivelou à rival uma máscara de vitríolo que o tempo
não apagará. Foi por amor que este homem roubou a casa onde estava empregado e
se matou quando lhe bateu à porta a polícia; que este outro, que tu não
conheces, vem ter comigo pedindo-me dinheiro para mandar um ramo à sua actriz,
que o despreza, oferecendo-se-me em troca para matar um homem se preciso for;
que este mancebo que passava todos os dias na minha rua, pensativo e tristonho,
apareceu um belo dia enforcado no seu quarto; que aquele delirou de amor e
acabou morto de frio numa rua. Que este homem se arruinou ao jogo para dar à
amante; que este matou e foi degredado; que este roubou, entisicou, está na cadeia
ou no hospital». In Albino Forjaz
Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred Teixeira, Wikipédia, 2011,
Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.
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