sábado, 25 de março de 2017

Palavras Cínicas. Albino Forjaz Sampaio. «Isto é impossível. Onde encontraste tu uma mulher que amasse alguém? Inútil. Procurarias em vão…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Carta III
«(…) Lembras-te de quando eu te dizia que a Vida era má, tu responderes que ainda havia o Amor? Convicto ainda sonhavas a vida grande, auroreal, sadia, junto de uma mulher que fosse o corpo do teu corpo, a alma da tua alma e para quem tu fosses sempre o insaciável dos seus encantos, das suas frases, dos seus beijos. A cada desilusão que te desse a vida tu te refugiarias nesse, turris eburnea tão alta e forte que poderia olhar as estrelas frente a frente, e que nem a morte ousaria derrubar. Ela, a Eleita, te daria então um encanto novo para cada desengano, para cada desânimo te daria coragem na Bíblia nervosa e quente dos seus braços, no anseio louco e perfumado do seu corpo. Seria a Santa do teu altar, a luz que iluminaria a tua vida inteira. Tu contar-lhe-ias os teus cansaços e ela te daria o seu colo para descansares. E tu serias bom, altivo e amante. Serias forte para a defender, criança para adorares. Terias a cada frase dos seus lábios o coração em festa. Os teus beijos seriam abençoados, e ela, a Santa, seria bendita entre as mulheres. Quando tu tivesses sede ela te diria abrindo as veias: bebe . Quando tu tivesses fome ela uniria à tua a sua boca e te alimentaria com o seu hálito caricioso e quente. Viveria só para ti sem egoísmos nem vaidades. E os seus filhos seriam belos como mulheres e fortes como Deuses.
Isto é impossível. Onde encontraste tu uma mulher que amasse alguém? Inútil. Procurarias em vão. Uma mulher é um objecto que se usa e se põe de parte ao fim de uma hora, de um dia, de uma semana, de uma quinzena, de um ano quando muito. A fidelidade aborrece. Mas há acaso alguma mulher fiel? Em que pensam elas? No interesse. Todas se vendem. Umas compram-se por amor, como outras se compram por dinheiro. Varia muito o preço por que uma mulher se entrega: uma moeda de prata ou um colar de pérolas, uma nota de banco ou um adereço, uma ceia, um reino, um capricho, um cigarro. Eu já tenho comprado mulheres por um cigarro. E o que é o amor? Uma triaga deliciosa, não é verdade? A mais podre das ilusões.
A mulher é sempre uma criatura vaidosa e interesseira, balofa e irritante, como os homens são e serão sempre cínicos, canalhas e traidores. É a maior das egoístas do género humano. Seus lábios são uma ânfora maldita que tem no fundo a mentira. Eles derramam o crime, a covardia, a perfídia. Seus ventres são sementeiras de dores, como diz Eugénio Castro. Mas porque gosto eu tanto delas? Toda a vida me acorrentaram à cadeia de beijos dos seus braços. Assassinaram-me a energia. Tornaram-me à força de desgostos e de irritações, eu que era uma criatura de pequeninas carícias, de mil afectos pequeninos, de pequenas coisas amorosas, embotado e seco como as plantas que morrem à míngua de água. Amei rude e loucamente, com fé, com ardor. Fui desamado sempre, escarnecido, pisado.
Quando eu amava, rouco de dizer o meu amor, não encontrava um único coração que se me abrisse. E então, conheci más todas as mulheres. Mas como hão de elas amar-me se eu lhes não posso dar ouro? Que tenho eu para lhes dar? O coração? E para que serve o coração? Acaso isso já serviu a alguém? Não encontrei nunca uma mulher que não roçasse a espinha pela minha bolsa, como os gatos quando ronronam aos pés do dono. E todo aquele meu passado amor, toda essa afeição foi como um charuto caro que alguém esqueceu aceso. Hoje não amo nem creio, como Schopenhauer. Não é porém despeito tudo isto. Eu continuo a cair nos braços das minhas amantes, mas julgando-as o pior possível. Quem ama morre. Chi no stima vien stimato, diz o provérbio italiano. Por isso despreza os homens como desprezas as mulheres. Ai se acreditas! A mentira no amor é tudo. Quanta mentira não há num beijo? Quanto veneno? Quanta traição? Um beijo envenena sempre. Alguns há que envenenam a vida inteira». In Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred Teixeira, Wikipédia, 2011, Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.

Cortesia de EGPaz/Wikipedia/JDACT