segunda-feira, 27 de março de 2017

Número Zero. Umberto Eco. «Mas o que espera o Comendador desta experiência? O Comendador pretende entrar no salão reservado da finança, dos bancos»

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«(…) Compreendi. Mas, se quiser que eu colabore lealmente, talvez seja bom me dizer quem paga, porque existe o projecto Amanhã, porque ele talvez não dê certo e o que é que vai dizer no livro que, modéstia à parte, será escrito por mim. Pois bem, quem paga é o comendador Vimercate. Deve ter ouvido falar dele... Sei quem é Vimercate, de vez em quando aparece nos jornais: controla dezenas de hotéis na costa Adriática, muitas casas de repouso para aposentados e inválidos, uma série de negócios variados sobre os quais correm imensos rumores, algumas televisões locais que começam a transmitir às onze da noite só leilões, televendas e alguns shows licencioso… E umas vinte publicações. Revistazecas, parece-me, fofocas sobre celebridades como Loro, Peeping Tom, e semanários sobre inquéritos judiciais como O Crime Ilustrado, O Que Se Esconde, porcarias, trash. Não, também revistas especializadas, jardinagem, viagens, automóveis, veleiros, O Médico em Casa. Um império. É bonito este escritório, não é? Até temos um ficus, uma figueira-da borracha, como os manda-chuvas da RAI. E temos à disposição um open space, como se diz na América, para os redactores; um pequeno estúdio para si, pequeno mas digno, e uma sala para o arquivo. Tudo grátis, neste prédio que reúne todas as empresas do Comendador. Quanto ao resto, a produção e a impressão dos números zero far-se-ão com o aparelho das outras revistas; assim o custo da experiência reduz-se de forma aceitável. E estamos praticamente no centro, não como os grandes diários que, hoje em dia, é preciso apanhar dois metros e um autocarro para lá chegar.
Mas o que espera o Comendador desta experiência? O Comendador pretende entrar no salão reservado da finança, dos bancos, e mesmo dos grandes jornais. O meio é a promessa de um novo jornal disposto a dizer a verdade sobre tudo. Doze números zero, digamos 0/1, 0/2, e por aí fora, publicados em pouquíssimos exemplares reservados que o Comendador avaliará e depois fará com que sejam vistos por pessoas que ele lá sabe. Quando o Comendador demonstrar que pode pôr em dificuldades aquilo que se chama de clube de elite das finanças e da política, é provável que o clube de elite lhe peça para parar com essa ideia, então ele desiste do Amanhã e consegue licença para entrar no clube de elite. Imagine, só para dar um exemplo, que apenas uns dois por cento de acções de um grande diário, de um banco, de um canal de televisão importante. Eu assobiara: dois por cento é muito! Ele tem dinheiro para um empreendimento desse tipo? Não seja ingénuo. Estamos falando de finanças, não de comércio. Primeiro compras, depois tratarás de que o dinheiro para pagar te chegue.
Compreendi. E também compreendo que a experiência só vai funcionar se o Comendador não disser que no fim o jornal não vai sair. Todos deverão acreditar que as suas rotativas estão a patear, por assim dizer... Naturalmente. Que o jornal não sairá, o Comendador não o disse nem a mim, simplesmente suspeito, ou seja, tenho certeza. E os nossos colaboradores não vão poder saber disso; vamos vê-los amanhã: eles precisarão trabalhar achando que estão a construir o seu futuro. Só eu e você é que estamos a par desta história. Mas o que ganha você com isso, se depois escreve tudo o que fizeram durante um ano para favorecer a chantagem do Comendador? Não use a palavra chantagem. Nós publicaremos, como diz o New York Times, all the news that’s fit to print... e talvez mais alguma… » In Umberto Eco, Número Zero, 2015, tradução de José Vaz Carvalho, Gradiva Publicações, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-616-643-4.

Cortesia de Gradiva/JDACT