terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

A Brincadeira. Milan Kundera. «… senti nas faces os dedos húmidos a aplicarem o creme sobre a pele e apercebi-me dessa coisa singular e incongruente: uma desconhecida que não me é nada, a quem eu também não sou nada, acaricia-me docemente»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Depois do que nos sentámos à volta da mesinha (Kostka tinha preparado café) e conversámos uns momentos (sentado no divã, constatava com prazer a sua firmeza, não encovava nem guinchava). Kostka anunciou em seguida que deveria retirar-se para voltar ao hospital, e apressou-se a iniciar-me em certos segredos caseiros: É preciso fechar com força a torneira da banheira, a água quente corre, contrariamente ao habitual, da torneira marcada com a letra F, dentro do pequeno armário há uma garrafa de vodka acabada de encetar. Em seguida, deu-me um molho com duas chaves e mostrou-me a da porta do prédio e a do estúdio. Tendo dormido em inumeráveis camas ao longo da minha vida, criei um culto particular pelas chaves, pelo que as fiz deslizar para dentro do meu bolso com um júbilo silencioso. Kostka exprimiu ao partir o voto de que o seu estúdio me proporcionasse qualquer coisa realmente bela. Sim, disse-lhe, vai-me permitir efectuar uma bela destruição. Você acha que as destruições podem ser belas?, disse Kostka, e eu sorri no meu íntimo pois que, através daquela pergunta (proferida com doçura mas pensada combativamente) o reconheci exactamente tal como ele era (simpático e cornico simultaneamente) quando do nosso primeiro encontro há quinze anos atrás. Respondi-lhe: bem sei que você é um pacífico operário na eterna obra divina e que ouvir falar em destruições lhe desagrada, mas que hei-de fazer: eu por mim não sou um aprendiz de pedreiro de Deus. Além disso, se os aprendizes de pedreiro de Deus construírem cá em baixo edifícios com paredes verdadeiras, haverá poucas probabilidades de as nossas destruições os prejudicarem. Mas parece-me que em vez de paredes não vejo por todo o lado senão cenários. E destruir decorações é algo de muito justo.
Voltámos ao sítio onde nos tínhamos separado da última vez (talvez há nove anos atrás); a nossa desavença revestia-se agora de uma forma metafórica porque lhe conhecíamos bem o fundo e não sentíamos a necessidade de voltar a ela. Precisávamos apenas de repetir que não havíamos mudado, que continuávamos os dois igualmente diferentes um do outro (a esse respeito, devo dizer que gostava dessa dissemelhança com Kostka e que tinha, por isso, prazer em discutir com ele, pois que deste modo podia sempre, de passagem, verificar quem, de facto, sou e o que penso). Assim, para me tirar todas as dúvidas a seu respeito, respondeu-me: o que acabou de dizer soa bem. Mas diga-me lá: céptico como é, onde foi buscar a certeza que o faz distinguir o que é decoração do que é parede? Nunca lhe ocorreu duvidar de que as ilusões de que faz troça não sejam realmente ilusões? E se está enganado? E se se tratasse de valores, e você fosse um destruidor de valores? E acrescentou em seguida: um valor destruido e uma ilusão desmascarada têm o mesmo corpo lastimável, parecem-se e nada é mais fácil do que confundi-los.
Enquanto acompanhava Kostka no caminho para o hospital situado na outra ponta da cidade, brincava com as chaves no fundo do meu bolso e sentia-me bem ao lado do meu amigo de longa data, que era capaz de tentar convencer-me da sua verdade fosse onde fosse, até agora, ao atravessar o terreno desigual dos quarteirões novos. Kostka sabia sem dúvida que teríamos por nossa conta toda a noite do dia seguinte, e por isso logo se deixou de filosofias para passar aos assuntos banais, confirmando de novo que eu o esperaria amanhã em sua casa quando ele regressasse às sete horas (ele próprio não possuía outras chaves), e perguntando-me se não precisava realmente de mais nada. Passei a mão pela cara e disse que precisava de passar no barbeiro, pois tinha uma barba indecorosa. Vem mesmo a calhar, disse Kostka, arranjo-lhe um barbeiro especial! Não recusei os bons préstimos de Kostka e deixei-me levar a um pequeno salão onde em frente de três espelhos se encontravam plantadas três grandes cadeiras giratórias, duas das quais ocupadas por dois homens de cabeça inclinada e cara untada de creme. Duas mulheres de bata branca inclinavam-se sobre eles. Kostka aproximou-se de uma delas e segredou-lhe qualquer coisa; a mulher limpou a navalha com uma toalha e chamou para dentro: uma rapariga nova de bata branca apareceu para prestar os seus cuidados ao senhor abandonado na cadeira, enquanto a mulher a quem Kostka havia falado me dirigiu uma breve inclinação de cabeça e me convidou com a mão a sentar-me na cadeira livre. Kostka e eu despedimo-nos um do outro com um aperto de mão, e eu instalei-me, a cabeça apoiada na almofada que servia de encosto, e, como desde há muitos anos não gostava de olhar para a minha cara, esquivei-me ao espelho situado na minha frente, ergui os olhos e deixei-os errar pelas manchas do tecto caiado de branco.
Mantive os olhos pousados no tecto mesmo depois de sentir no pescoço os dedos da cabeleireira, que entalavam no colarinho da minha camisa a ponta de uma toalha branca. Depois ela afastou-se um passo, e não ouvi mais do que o vaivém da lâmina a ser afiada no cabedal e deixei-me ficar numa espécie de imobilidade beatífica cheia de feliz indiferença. Pouco depois, senti nas faces os dedos húmidos a aplicarem o creme sobre a pele e apercebi-me dessa coisa singular e incongruente: uma desconhecida que não me é nada, a quem eu também não sou nada, acaricia-me docemente. Em seguida, com um pincel, a cabeleireira pôs-se a espalhar o sabão e parecia-me não estar realmente sentado, mas flutuar num espaço branco semeado de manchas. E então imaginava-me (porque, mesmo nos momentos de repouso, as ideias não suspendem os seus jogos) ser uma vítima sem defesa, totalmente submetido à mulher que tinha afiado a lâmina». In Milan Kundera, A Brincadeira, 1967, Publicações dom Quixote, Lisboa, 1994, ISBN 978-972-200-014-4(7), 2016, ISBN 978-972-205-917-6.

Cortesia de PdonQuixote/JDACT