jdact
Alexandria.
Egipto. 1799
«(…)
Talvez tenha existido um inventário dos perfumes que a fábrica de Cleópatra criou,
mas nós não o temos. E isso da Fragrância da Memória é coisa que não existe.
Não pode haver um perfume que nos faça recordar coisas. Tudo não passa de uma
lenda que os nossos antepassados fabricaram para que a Maison L'Étoile adquirisse
uma aura mais exótica. Ao longo de mais de duzentos anos, a nossa família tem criado,
produzido e vendido perfumes. Apenas perfumes, Robbie. Misturas de óleos e álcool.
Não sonhos. Não fantasias. Esses não passam de invenções, Robbie, destinadas a entreter-nos
e a cativar-nos. A mãe ensinara-lhe tudo acerca de histórias. Sobre as que se inventam
de propósito. E sobre as que nos atingem, sem apelo nem agravo. Mesmo quando são
assustadoras e nos têm sob o seu poder, podemos controlá-las, dizia Audrey com um
olhar conhecedor. Jac compreendia. A mãe estava a dar-lhe pistas. A ajudá-la a lidar
com aquilo que as tornava diferentes dos outros. Apesar dos conselhos da mãe, o
faz-de-conta quase conduzira Jac à loucura. Por piores que as suas visões tivessem
sido quando Audrey era viva, intensificaram-se com a morte desta. E não houvera
forma de Jac se conseguir convencer de que não eram reais. Ao fim de meses de consultas
a médicos, que prescreviam tratamentos e medicamentos que não só não ajudavam
como por vezes a faziam sentir-se ainda mais insana, houve um que olhou para dentro
dela e a compreendeu. Ensinou-a a destilar os terrores da mesma forma que os perfumistas
pegavam em flores e daí extraíam as suas essências. Depois trabalhou com ela no
sentido de decifrar aquelas sanguinárias e estridentes alucinações. Ensinou-a a
encontrar o simbolismo nos seus devaneios e a usar arquétipos mitológicos e
espirituais para os interpretar. Os símbolos, explicou ele, não têm de relacionar-se
com a vida real da pessoa. Frequentemente, fazem parte do inconsciente colectivo.
Os arquétipos são uma linguagem universal. Constituíam as pistas de que Jac necessitava
para decifrar o seu tormento.
Numas
das alucinações mais terríveis e recorrentes, Jac encontrava-se encurralada num
quarto em chamas, num arranha-céus no meio de uma cidade apocalítica. Uma das paredes
estava coberta de janelas. Desesperadamente, ao mesmo tempo que o fumo ameaçava
sufocá-la, tentou encontrar uma forma de abrir os caixilhos. Se conseguisse sair
para o parapeito, sabia que podia usar as asas translúcidas presas às suas
costas para voar rumo a um lugar seguro. Algures, fora do quarto, ouvia vozes de
pessoas, muito embora tal fosse impossível por cima do rugido do fogo. Gritava por
ajuda, mas ninguém vinha em seu auxílio. Iria morrer. Com a ajuda do médico, Jac
sondou o seu inconsciente e conseguiu identificar vestígios do mito de Dédalo e
Ícaro. Uma importante diferença, que se revelou a pista para o entendimento do significado
do sonho, foi que, no seu pesadelo, Jac estava sozinha. Tanto o pai como a mãe a
haviam abandonado. Ainda que Ícaro tivesse ignorado o conselho do pai, este estava
presente para lho dar. No entanto, Jac não tinha ninguém que a avisasse que não
deveria voar demasiado perto do sol ou em direcção ao mar. Estava sozinha. Aprisionada.
Condenada. Fadada a morrer queimada.
Aprender
sobre os arquétipos e a imagética simbólica fora o primeiro passo num longo
caminho que a conduzira à escrita de Caçadores de Mitos e, depois, à produção
do programa televisivo. Ao invés de se tornar perfumista como o irmão e o pai, sem
esquecer o avô, Jac tornara-se uma exploradora, procurando a origem dos antigos
mitos. Deu vida às fabulosas narrativas para as tornar mais realistas. Viajando
para Atenas, Roma e Alexandria, procurou marcos arqueológicos e registos históricos,
buscando provas da existência das personagens e acontecimentos que se haviam tornado
mitos. Jac queria ajudar as pessoas a compreender que as histórias existiam como
metáforas, lições e mapas, mas não como verdades. A magia pode ser perigosa. A realidade
concede poder. Não existiam Minotauros nem monstros. Tal como não existiam unicórnios,
ou fantasmas. Existia uma linha que separava o facto da fantasia. E, enquanto
adulta, nunca desviava os olhos dela. Excepto quando ia ali, todos os anos, a 10
de Maio, no aniversário da morte da mãe». In M. J. Rose, O Livro dos Perfumes
Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN
978-989-724-039-3.
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