quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

O Livro dos Perfumes Perdidos. MJ Rose. «Ainda que Ícaro tivesse ignorado o conselho do pai, este estava presente para lho dar»

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Alexandria. Egipto. 1799
«(…) Talvez tenha existido um inventário dos perfumes que a fábrica de Cleópatra criou, mas nós não o temos. E isso da Fragrância da Memória é coisa que não existe. Não pode haver um perfume que nos faça recordar coisas. Tudo não passa de uma lenda que os nossos antepassados fabricaram para que a Maison L'Étoile adquirisse uma aura mais exótica. Ao longo de mais de duzentos anos, a nossa família tem criado, produzido e vendido perfumes. Apenas perfumes, Robbie. Misturas de óleos e álcool. Não sonhos. Não fantasias. Esses não passam de invenções, Robbie, destinadas a entreter-nos e a cativar-nos. A mãe ensinara-lhe tudo acerca de histórias. Sobre as que se inventam de propósito. E sobre as que nos atingem, sem apelo nem agravo. Mesmo quando são assustadoras e nos têm sob o seu poder, podemos controlá-las, dizia Audrey com um olhar conhecedor. Jac compreendia. A mãe estava a dar-lhe pistas. A ajudá-la a lidar com aquilo que as tornava diferentes dos outros. Apesar dos conselhos da mãe, o faz-de-conta quase conduzira Jac à loucura. Por piores que as suas visões tivessem sido quando Audrey era viva, intensificaram-se com a morte desta. E não houvera forma de Jac se conseguir convencer de que não eram reais. Ao fim de meses de consultas a médicos, que prescreviam tratamentos e medicamentos que não só não ajudavam como por vezes a faziam sentir-se ainda mais insana, houve um que olhou para dentro dela e a compreendeu. Ensinou-a a destilar os terrores da mesma forma que os perfumistas pegavam em flores e daí extraíam as suas essências. Depois trabalhou com ela no sentido de decifrar aquelas sanguinárias e estridentes alucinações. Ensinou-a a encontrar o simbolismo nos seus devaneios e a usar arquétipos mitológicos e espirituais para os interpretar. Os símbolos, explicou ele, não têm de relacionar-se com a vida real da pessoa. Frequentemente, fazem parte do inconsciente colectivo. Os arquétipos são uma linguagem universal. Constituíam as pistas de que Jac necessitava para decifrar o seu tormento.
Numas das alucinações mais terríveis e recorrentes, Jac encontrava-se encurralada num quarto em chamas, num arranha-céus no meio de uma cidade apocalítica. Uma das paredes estava coberta de janelas. Desesperadamente, ao mesmo tempo que o fumo ameaçava sufocá-la, tentou encontrar uma forma de abrir os caixilhos. Se conseguisse sair para o parapeito, sabia que podia usar as asas translúcidas presas às suas costas para voar rumo a um lugar seguro. Algures, fora do quarto, ouvia vozes de pessoas, muito embora tal fosse impossível por cima do rugido do fogo. Gritava por ajuda, mas ninguém vinha em seu auxílio. Iria morrer. Com a ajuda do médico, Jac sondou o seu inconsciente e conseguiu identificar vestígios do mito de Dédalo e Ícaro. Uma importante diferença, que se revelou a pista para o entendimento do significado do sonho, foi que, no seu pesadelo, Jac estava sozinha. Tanto o pai como a mãe a haviam abandonado. Ainda que Ícaro tivesse ignorado o conselho do pai, este estava presente para lho dar. No entanto, Jac não tinha ninguém que a avisasse que não deveria voar demasiado perto do sol ou em direcção ao mar. Estava sozinha. Aprisionada. Condenada. Fadada a morrer queimada.
Aprender sobre os arquétipos e a imagética simbólica fora o primeiro passo num longo caminho que a conduzira à escrita de Caçadores de Mitos e, depois, à produção do programa televisivo. Ao invés de se tornar perfumista como o irmão e o pai, sem esquecer o avô, Jac tornara-se uma exploradora, procurando a origem dos antigos mitos. Deu vida às fabulosas narrativas para as tornar mais realistas. Viajando para Atenas, Roma e Alexandria, procurou marcos arqueológicos e registos históricos, buscando provas da existência das personagens e acontecimentos que se haviam tornado mitos. Jac queria ajudar as pessoas a compreender que as histórias existiam como metáforas, lições e mapas, mas não como verdades. A magia pode ser perigosa. A realidade concede poder. Não existiam Minotauros nem monstros. Tal como não existiam unicórnios, ou fantasmas. Existia uma linha que separava o facto da fantasia. E, enquanto adulta, nunca desviava os olhos dela. Excepto quando ia ali, todos os anos, a 10 de Maio, no aniversário da morte da mãe». In M. J. Rose, O Livro dos Perfumes Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-039-3.

Cortesia de CAutor/JDACT