segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A Brincadeira. Milan Kundera. «… vou precisar de um ambiente agradável. Obviamente, não para estar sozinho. Sim, fez Kostka baixando ligeiramente a cabeça, calculo»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Expliquei-lhe que tinha chegado havia uma hora para tratar de um assunto sem importância que me reteria ali perto de dois dias, e ele logo me manifestou a surpresa feliz por a minha primeira visita lhe ter sido dedicada. Foi-me subitamente desagradável não o ter vindo procurar com um espírito desinteressado, por ele só, e a pergunta que lhe fiz (perguntei-lhe jovialmente se voltara a casar) pareceu reflectir uma atenção sincera, quando, no fundo, provinha de um calculismo baixo. Disse-me (para minha satisfação) que continuava só. Declarei que tínhamos muito que contar um ao outro. Ele concordou e lamentou não dispor, infelizmente, de pouco mais de uma hora, visto ter ainda que voltar ao hospital e, no fim da tarde, ter de apanhar um autocarro para fora da cidade. Não mora aqui?, digo, assustado. Assegurou-me que sim, um estúdio num edifício novo, mas que é penoso viver solitário. Soube que Kostka tinha, numa outra cidade a vinte quilómetros, uma noiva professora, possuindo, também ela, um pequeno apartamento de duas assoalhadas. Vai viver com ela futuramente?, perguntei-lhe. Disse-me que dificilmente encontraria trabalho noutro sítio tão interessante como aquele que lhe arranjara e que, pelo contrário, a sua noiva teria dificuldade em arranjar um lugar aqui. Pus-me a vituperar (de bom coração) as demoras da burocracia, incapaz de facilitar as coisas de maneira a que um homem e uma mulher possam viver juntos. Sossegue, Ludvik, disse-me com uma doce indulgência, que não é assim tão insuportável. A viagem custa-me, é certo, dinheiro e tempo, mas a minha solidão permanece intacta e sou livre. Porque tem você um tal desejo de liberdade?, perguntei-lhe. E você?, disse ele. Eu ando atrás das raparigas, respondi-lhe. Não é pelas mulheres, é por mim que me faz falta a minha liberdade, disse, e acrescentou: oiça, venha um momento a minha casa antes de eu me ir embora. Eu não pedia mais que isso. Saídos do recinto do hospital, logo fomos dar a um grupo de edifícios novos que, uns a seguir aos outros, se elevavam desarmoniosamente de um solo poeirento desnivelado (sem relva, sem passeios, sem asfalto) e formavam um triste cenário nos confins dos campos, vastos e planos, estendidos a perder de vista. Atravessámos uma porta, subimos uma escada demasiado estreita (o elevador estava avariado) e detivemo-nos no terceiro andar, onde reconheci o nome de Kostka no cartão-de-visita. Quando, tendo atravessado a entrada, nos encontrámos na sala, senti-me mais que satisfeito: um grande e confortável divã ocupava um canto; além do divã, havia uma pequena mesa, uma poltrona, uma grande biblioteca, um gira-discos e um aparelho de rádio.
Elogiei a Kostka o seu quarto e perguntei-lhe como era a casa de banho. Nada de luxuoso, disse, contente do interesse que eu mostrava, e fez-me passar à entrada de onde se abria a porta para a casa de banho, pequena mas muito agradável, com banheira, duche, lavatório. Ao ver este apartamento magnífico, vem-me uma ideia, disse. Que vai fazer amanhã à tarde e à noite? Ali, desculpou-se confuso, amanhã terei um longo dia de serviço, não voltarei com certeza a casa antes das sete horas. À noite, não vai estar livre? Pode ser que tenha a noite livre, respondi, mas, mais cedo, não me pode emprestar o estúdio durante a tarde? A minha pergunta surpreendeu-o, mas, imediatamente (como se tivesse medo que eu duvidasse do seu desvelo), disse-me: com todo o gosto, é seu. E prosseguiu, como que num esforço de recusa em procurar as razões do meu pedido: se tem problemas de alojamento, pode dormir aqui a partir de hoje, pois irei directamente para o hospital. Não é preciso. Estou no hotel. O problema é que o meu quarto é bastante desconfortável e, amanhã à tarde, vou precisar de um ambiente agradável. Obviamente, não para estar sozinho. Sim, fez Kostka baixando ligeiramente a cabeça, calculo». In Milan Kundera, A Brincadeira, 1967, Publicações dom Quixote, Lisboa, 1994, ISBN 978-972-200-014-4(7), 2016, ISBN 978-972-205-917-6.

Cortesia de PdonQuixote/JDACT