terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Moll Flanders. Daniel Defoe. «Meu nome verdadeiro é tão mencionado nos registos e anais de Newgate, e também nos de Old Bailey, onde ainda se acham pendentes certas questões importantes referentes à minha conduta pessoal»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Construído sobre essa base, este livro é recomendado como um trabalho que há-de proporcionar uma lição em cada um de seus incidentes; e poderá extrair dele referências justas e religiosas que lhe valerão boa instrução, se lhe aprouver fazer uso delas. Todas as acções dessa dama famosa e suas malfeitorias contra a humanidade são avisos para que as pessoas honestas se acautelem contra elas, pois mostram os métodos utilizados para atrair, saquear e roubar os inocentes e, portanto, a forma de evitá-los; a maneira como ela rouba o colar de uma menina inocente, enfeitada pela vaidade da mãe para a aula de dança, representa uma boa advertência para essas pessoas, como também o roubo do relógio de ouro da jovenzinha no parque. O golpe aplicado a uma criada de pouco siso, na central de coches da rua St. John, que entrega a Moll um embrulho da sua patroa, o furto cometido no incêndio e a repetição do feito em Harwich são excelentes advertências para que, em casos análogos, estejamos mais atentos a imprevistos de toda sorte. Sua dedicação final a uma vida mais sóbria e laboriosa na Virgínia, ao lado do seu marido deportado, é instrutiva exposição para todas aquelas criaturas infelizes que se veem forçadas a refazer a vida no estrangeiro, seja pela desgraça da deportação ou por outra calamidade qualquer, ensinando-lhes que o trabalho e a diligência têm a sua devida recompensa, mesmo nos mais remotos sítios do mundo, e que nenhuma situação pode ser tão baixa, desprezível e destituída de perspectivas a ponto de impedir que o trabalho incansável contribua em muito para tirar-nos dessa condição e, com o tempo, erguer a criatura mais ínfima para que possa voltar a conviver com pessoas respeitáveis e dar-lhe nova oportunidade na vida. Essas são algumas das lições profundas. Restam ainda para vir à luz duas histórias belíssimas, das quais a presente narrativa, sem entrar em detalhes, dá uma breve ideia, mas que são demasiado longas para ser incluídas no mesmo tomo; realmente, posso dizer que ambas constituem, por si só, um volume inteiro: primeiro, a vida de sua preceptora, como ela a chama, que, segundo parece, no decurso de poucos anos percorreu os degraus de dama, prostituta e alcoviteira; parteira, envolvida com penhores, traficante de menores, mestra de ladrões e receptora de objectos roubados, ou seja, em poucas palavras, sendo ela própria uma ladra, foi formadora de ladrões e actividades assemelhadas e, apesar de tudo, tornou-se por fim uma penitente. A segunda história é a vida do seu marido deportado, um salteador de estradas, que, segundo parece, durante doze anos se dedicou, com êxito, a cometer vilanias nas estradas, por fim saiu-se bem, como deportado voluntário, e não como condenado, e cuja vida é de incrível variedade; no entanto, como já disse, essas duas histórias são demasiado extensas para serem narradas aqui, nem posso prometer que saiam mais adiante. Na realidade, não podemos dizer que esta história chegue até ao fim da vida da famosa Moll Flanders, como ela mesma se chama, uma vez que ninguém pode contar a própria vida até ao fim, a menos que possa escrever depois da morte; mas a vida do seu marido, escrita por uma terceira pessoa, constitui uma narrativa completa dos dois, relatando o tempo em que viveram juntos na América e de como voltaram para a Inglaterra, após cerca de oito anos, período em que acumularam grande fortuna, e onde ela viveu, ao que parece, até idade muito avançada, mas sem ser uma penitente tão contrita como foi de início, segundo consta, ela apenas continuou falando sempre com horror de todos os episódios de sua vida passada. Muitos episódios agradáveis ocorreram na última fase de sua vida, nas colónias de Maryland e Virgínia, tornando muito alegre esse trecho da sua vida; não sendo narrados com a mesma elegância daqueles que ela mesma arrolou.

As venturas e desventuras da famosa Moll Flanders
Meu nome verdadeiro é tão mencionado nos registos e anais de Newgate, e também nos de Old Bailey, onde ainda se acham pendentes certas questões importantes referentes à minha conduta pessoal, que não é de esperar que eu o mencione, nem que narre aqui a história da minha família; depois da minha morte talvez ele seja divulgado, mas agora não seria conveniente, nem mesmo caso se concedesse uma amnistia geral que não fizesse excepção ou ressalva alguma quanto a pessoas ou crimes. Portanto, bastará dizer que, tal como alguns dos meus piores companheiros, que já não estão em condições de me prejudicar por haverem deixado este mundo pelos degraus e pela corda, sina que muitas vezes julguei seria também a minha, as pessoas me conheciam pelo nome de Moll Flanders, e é assim que lhes peço que me permitam nomear-me até eu me atrever a declarar quem fui e quem sou». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A vida Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT