quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «O jovem obedeceu. Pouco depois, o soldado teve de se render às evidências e inclinar-se numa vénia. Peço desculpa, vossa senhoria, balbuciou, não podia saber...»

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A pedra do exílio
Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…) O acampamento dos sobreviventes de Crécy reunia-se em torno de uma velha igreja bem visível da estrada. Não estava delimitado por paliçadas ou fossados, a única defesa consistia num reduzido número de sentinelas. Maynard esperou que o carro se detivesse e depois pediu a ajuda de Nicolas para descer. Teve de permanecer agarrado ao seu braço e manter-se em equilíbrio sobre a perna direita, apesar de sentir que o espírito se revigorava. Estava finalmente de pé e podia observar tudo do alto da própria estatura. Acompanhando os seus movimentos pelo canto do olho, Jérôme ergueu-se do lugar do condutor, recomendou à mulher que esperasse de rédeas na mão e apressou-se a juntar-se a ele. Foi imobilizado por dois soldados. Não façais mal a este bom homem, interveio de repente o cavaleiro, veio até aqui para me ajudar. Um dos dois armeiros correu ao seu encontro, agarrando-o pelo colarinho. Quem sois para vos expressardes com tal desaforo? Maynard libertou-se com um gesto displicente da mão. O sangue e a lama da minha roupa deveriam falar por si, respondeu, erguendo o queixo. Sou cavaleiro de sua majestade e senhor de Rocheblanche. Exijo ser recebido neste acampamento para me reunir aos milites meus iguais. Perdoai o equívoco, insistiu a sentinela, mas no mau estado em que vos encontrais poderíeis passar por aldeão. Nicolas, gritou o cavaleiro, impaciente, mostrai a minha espada a este pedaço de asno, para que possa observar o brasão da linhagem que se encontra no guarda-mão.
O jovem obedeceu. Pouco depois, o soldado teve de se render às evidências e inclinar-se numa vénia. Peço desculpa, vossa senhoria, balbuciou, não podia saber... Mavnard não lhe prestou a mais pequena atenção. Voltou-se, pelo contrário, para o tapeceiro, que finalmente se encontrava livre de movimentos: mestre Jérôrne, os nossos caminhos separam-se aqui. No entanto, antes de nos despedirmos, peço-vos que me deis algo em que possa escrever. Tenho pena e tinta, disse o homem, incapaz de interpretar aquele insólito pedido, mas o único pergaminho de que disponho é a pele que uso para anotar as minhas contas... Não pretendo tanto, basta-me um pedaço de pano. Cada vez mais confuso, o tapeceiro revistou entre os haveres, no carro, e apareceu com uma peça de cânhamo de urdidura suficientemente densa para que se pudesse escrever por cima. Rocheblanche pegou nela, mergulhou a pena na tinta e escreveu algumas linhas, às quais apôs a própria assinatura. Assim saldo a minha dívida, disse, restituindo o tecido.
Espero que chegue. O homem analisou o texto. Não compreendo... Maynard fixou-o, divertido. Não dissestes que vos dirigíeis a Paris? Sim, é verdade. Ora, encontrar alojamento perto da Cité ser-vos-á difícil e custar-vos-á muito dinheiro. Permiti-me portanto recomendar-vos ao meu reverendo tio Antoine Tempier, prior da Igreja de Saint-Denis. Quando chegardes a Paris, procurai-o e mostrai-lhe este pano. Podeis ficar certos de que vos arranjará aposentos dignos onde podeis viver e dedicar-vos ao vosso mester. Senhor, é demasiada generosidade…, agradeceu-lhe Jérôme, comovido. Nada em comparação com a vossa, respondeu o cavaleiro. Outra pessoa ter-me-ia abandonado à morte e à chuva na estrada. Vós, pelo contrário, tomastes conta de mim, salvando-me de morte certa. Tendes o meu respeito e a minha amizade, e bateu-lhe com uma mão no ombro. Se alguma vez, por infelicidade, vós e a vossa família incorrerdes em alguma dificuldade, contai sempre comigo. Depois de um aceno de despedida, Maynard voltou-se para o mais novo das duas sentinelas. Dai-me o vosso braço, para poder caminhar direito, ordenou-lhe em voz severa. Pousou então o olhar no impertinente que o agarrara pelo pescoço. E, vós, ide ao carro buscar as peças da minha armadura e levai-as para um alojamento onde eu possa ficar. Cuidai que seja confortável, caso contrário mandar-vos-ei açoitar!» In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT