quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Objecto Quase. José Saramago, «As balas das espingardas perfuram, mas quem dá o peito? O fuzilado. A morte tem esta peculiar beleza de ser tão clara como uma demonstração matemática, tão simples como unir com uma linha dois pontos»

jdact e wikipedia

«(…) Eis o Anobium, agora em grande plano, com a sua cara de coleóptero por sua vez carcomida pelo vento do largo e pelos grandes sóis que todos nós sabemos assolam as galerias abertas no pé da cadeira que acabou agora mesmo de partir-se, graças ao que a dita cadeira começa pela terceira vez a cair. Este Anobium, já isto foi dito por forma mais ligada às banalidades de genética e reprodução, teve predecessores na obra de vingança: chamaram-se Fred, Tom Mix, Buck Jones, mas estes são os nomes que ficaram para todo o sempre registados na história épica do Far-West e que não devem fazer-nos esquecer os coleópteros anónimos, aqueles que tiveram tarefa menos gloriosa, ridícula até, como de terem começado a atravessar o deserto e morrido nele, ou vindo pé ante pé pela vereda do pântano e aí escorregar e ficar sujo, malcheiroso, que é vexame, castigado com as gargalhadas da plateia e do balcão. Nenhum destes pôde chegar ao ajuste de contas final, quando o comboio apitou três vezes e os coldres foram ensebados por dentro para saírem as armas sem demora, já com os indicadores enganchados no gatilho e os polegares prontos a puxar o cão. Nenhum desses teve o prémio à espera nos lábios de Mary, nem a cumplicidade do cavalo Raio que vem por trás e empurra o cow-boy tímido pelas costas para os braços da rapariga, que não espera outra coisa. Todas as pirâmides têm pedras por baixo, os monumentos também. O Anobium vencedor é o último elo da cadeia de anónimos que o precedeu, em todo o caso não menos felizes, pois viveram, trabalharam e morreram, cada coisa em sua hora, e este Anobium que sabemos fecha o ciclo, e, como o zângão, morrerá no acto de fecundar. O princípio da morte. Maravilhosa música que ninguém ouviu durante meses e anos, sem descanso, nenhuma pausa, de dia e de noite, na hora esplêndida e assustadora do nascer do Sol e nessa outra ocasião de maravilha que é adeus luz até amanhã, este roer constante, contínuo, como um infinito realejo de uma nota só, moendo, triturando fibra a fibra, e toda a gente distraída a entrar e a sair, lá ocupada com as suas coisas, sem saber que dali sairá, repetimos, numa hora assinalada, de pistolas em punho, o Anobium, enquadrando o inimigo, o alvo, e acertando ou acentrando, que é precisamente acertar no centro, ou fica a ser desde agora, porque alguém tinha de ser o primeiro. Maravilhosa música afinal composta e tocada por gerações de coleópteros, para seu gozo e nosso benefício, como foi sina da família Bach, tanto antes como depois de João Sebastião. Música não ouvida, e se ouvisse que faria, por aquele que sentado na cadeira com ela cai e forma na garganta, de susto ou surpresa, este som articulado que talvez não venha a ser grito, uivo, muito menos palavra. Música que vai calar-se, que se calou agora mesmo: Buck Jones vê o inimigo caindo inexoravelmente para o chão, sob a grande e ofuscante luz do Sol texano, enfia nos coldres os revólveres e tira o grande chapéu de abas largas para enxugar a testa e porque Mary se aproxima a correr, de vestido branco, agora que o perigo já passou.
Haveria, porém, algum exagero em afirmar que todo o destino dos homens se encontra inscrito no aparelho bucal roedor dos coleópteros. Se assim fosse, teríamos ido viver todos para casas de vidro e ferro, portanto ao abrigo do Anobium, mas não ao abrigo de tudo, porque, afinal, por alguma razão existe, e para outra também, esse misterioso mal a que damos, nós cancerosos em potência, o nome de cancro do vidro, e essa tão vulgar ferrugem, que, vá alguém desvendar estes outros mistérios, não ataca o pau-ferro mas desfaz literalmente o que só ferro for. Nós, homens, somos frágeis, mas, em verdade, temos de ajudar a nossa própria morte. É talvez uma questão de honra nossa: não ficarmos assim inermes, entregues, darmos de nós qualquer coisa, ou então para que serviria estar no mundo? O cutelo da guilhotina corta, mas quem dá o pescoço? O condenado. As balas das espingardas perfuram, mas quem dá o peito? O fuzilado. A morte tem esta peculiar beleza de ser tão clara como uma demonstração matemática, tão simples como unir com uma linha dois pontos, desde que ela não exceda o comprimento da régua. Tom Mix dispara os seus dois revólveres, mas ainda assim é necessário que a pólvora comprimida nos cartuchos tenha poder suficiente e seja em quantidade suficiente para que o chumbo galgue a distância na sua trajectória ligeiramente curva (não tem que fazer aqui a régua), e, tendo cumprido as exigências da balística, fure primeiro à boa altura o colete de pano, depois a camisa talvez de flanela, a seguir a camisola de lã que de Inverno aquece e de Verão absorve o suor, e finalmente a pele, macia e elástica, que primeiramente se recolhe supondo, se a pele supõe, se não supura apenas, que a força dos projécteis ali se quebrará, e cairão portanto as balas por terra, na poeira do caminho, a seu salvo o criminoso até ao próximo episódio. Não foi porém assim. Buck Jones já tem Mary nos braços e a palavra Fim nasce-lhe da boca e vai encher o ecrã. Seria a altura de se levantarem os espectadores, devagar, seguirem pela coxia para a luz crua que vem da porta, porque foram à matinée, fazendo força para regressar a esta realidade sem aventura, um pouco tristes, um pouco corajosos, e tão mal apontados à vida que na carreira de tiro espera, que há mesmo quem se deixe ficar sentado para a segunda sessão: era uma vez». In José Saramago, Objecto Quase, 1978, Editorial Caminho, colecção O Campo da Palavra, 1998, ISBN 978-972-210-292-6.

Cortesia de ECaminho/JDACT