terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Grácia Nasi. Esther Mucznik. «A família Luna Mendes não é, pois, uma vulgar família marrana. Pertencia ao pequeno número de famílias privilegiadas que souberam tornar-se indispensáveis à coroa»

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Não adoro nem pau nem pedra, mas sim Deus que tudo governa
«(…) Francisco e o seu irmão Diogo dedicavam-se à compra e venda, para os grandes mercados da Europa do Norte, de pedras preciosas, especiarias e produtos de luxo vindos para Portugal pelas rotas abertas por Vasco da Gama. Muito rapidamente, ascenderam a uma posição de primeiro plano, ocupando um lugar de destaque na praça comercial de Lisboa. Comprando a pronto pagamento carregamentos inteiros de pimenta e especiarias, já tinham em 1525 praticamente o controlo do seu comércio, trabalhando ao serviço do rei, único detentor da importação em grosso. Assim à data do seu casamento, Francisco e o irmão Diogo, que entretanto se estabelecera em Antuérpia, já haviam construído um império que detinha a primazia do comércio de especiarias em toda a Europa. Herman Prins Salomon cita uma carta de privilégios de João III a Francisco Mendes, de 20 de Julho de 1530, que mostra a importância dos Mendes para a coroa portuguesa: [...] que havendo eu respeito aos serviços que Francisco Mendes, mercador, morador nesta cidade de Lisboa, tem feito a el-rei meu Senhor e padre que santa glória haja, e assim a mim, e aos que espero que ao diante me fará, e por ser dos principais mercadores que tratam na minha Casa da Índia, me apraz e hei por bem por lhe fazer graça e mercê [...] A família Luna Mendes não é, pois, uma vulgar família marrana. Pertencia ao pequeno número de famílias privilegiadas que souberam tornar-se indispensáveis à coroa. Não estavam, no entanto, ao abrigo das medidas persecutórias, o que contribuía para manter o sentimento de uma identidade própria e de um destino comum.

Se eu fosse rei de Lisboa,..., seria rei do mundo
Na primeira metade do século XVI, sob o reinado de Manuel I, Lisboa estava no apogeu da sua áurea. Se eu fosse rei de Lisboa, dirá Carlos V, imperador e rei de Espanha (1500-1558), seria em pouco tempo rei do mundo. A expansão marítima e os seus imensos ganhos estiveram na origem do desenvolvimento arquitectónico e cultural da cidade: desse esplendor de outrora restam apenas o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém e o Convento da Madre de Deus, que resistiram ao terramoto de 1755. Mas estes monumentos dão-nos uma ideia do que seria Lisboa nessa época, uma cidade onde todos os sonhos pareciam possíveis. Com efeito, Lisboa fervilha de actividade e dinamismo, num ambiente cosmopolita: desde o século XV, homens de negócios franceses, ingleses, flamengos, lombardos, genoveses, venezianos, milaneses e espanhóis agitam-se na cidade em torno de um porto que regista um movimento de quatrocentos a quinhentos navios de carga. O Terreiro do Paço, construído directamente no areal por gigantescos trabalhos de terraplanagem, torna-se o novo centro da capital, onde se instala a residência real, cujo interior luxuoso reflecte a opulência da época. Nas proximidades encontram-se a Casa da Índia e a Casa da Moeda ligada ao comércio de além-mar, assim como o Arsenal Militar onde Manuel I monta a sua colecção de armas e peças de artilharia.
No ar, espalham-se os odores excitantes da canela e noz-moscada armazenadas na Casa da Índia, crescem os jardins de árvores exóticas que despertam a curiosidade dos lisboetas, exibem-se leões, camelos, elefantes e rinocerontes. É ao longo dessa zona nobre, a Ribeira, escreve Dejanirah Couto, que se vai instalar a nobreza urbana, construindo opulentas e rebuscadas residências, como a Casa dos Bicos edificada em 1523, cujo proprietário Brás Albuquerque se inspira no palácio renascentista dito dos Diamantes, em Ferrara. No Mercado da Ribeira vendem-se hortaliças, peixe, caça, flores e manteigas, para além das especiarias, tâmaras e nozes de coco. Por sua vez, o Terreiro do Paço é ocupado por vendedores ambulantes que negoceiam de tudo um pouco, desde a mais simples quinquilharia até objectos de valor como artefactos em marfim. O ouro e a riqueza do Oriente permitem acumular fortunas rápidas, cujos sinais exteriores se multiplicam rivalizando no exotismo, no fausto e na ostentação. Mas são sobretudo os escravos asiáticos, africanos ou mouros, que emprestam à cidade o seu carácter exótico, levando um viajante espanhol a dizer que Lisboa parece um tabuleiro de xadrez com tantas peças brancas como pretas». In Esther Mucznik, Grácia Nasi, A judia portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-244-0.

Cortesia de ELivros/JDACT