Cortesia
de wikipedia e jdact
«Meu
relógio parou? Não. Mas os ponteiros parecem não andar. Não olhar para eles...
Pensar em outra coisa, em qualquer coisa: nesse dia que passou, tranquilo e
rotineiro apesar da agitação da espera. Enternecimento do acordar... André
estava enrodilhado no leito, olhos vendados, mãos postas contra a parede num
gesto infantil, como se no desamparo do sono tivesse necessitado experimentar a
solidez do mundo. Sentei-me à borda do leito, coloquei a mão sobre seu ombro.
Tirou a venda dos olhos, um sorriso desenhou-se em seu rosto espantado. São
oito horas! Coloquei na biblioteca a bandeja da primeira refeição. Peguei um
livro recebido na véspera e já folheado pela metade. Cacetes todas essas
lengalengas sobre a não-comunicação! Bem ou mal conseguimos nos comunicar, se o
queremos. Não com todo o mundo, é claro, mas com duas ou três pessoas. Às
vezes, acontece-me não falar a André sobre estados de ânimo, pequenos cuidados,
tristezas. Sem dúvida, ele também tem seus segredinhos, mas grosso modo não ignoramos nada um
do outro. Derramei nas xícaras chá-da-China bem quente, bem escuro. Bebemos
enquanto percorríamos a correspondência: o sol de Julho entrava em caudais no
aposento. Quantas vezes ficamos sentados junto à mesinha, em frente um do outro
e diante de xícaras de chá bem escuro e bem quente? Será assim, em seguida, em
um ano, em dez anos?... Este instante possuía a doçura de uma lembrança e a
alegria de uma promessa. Teríamos trinta ou sessenta anos? Os cabelos de André
branquearam cedo: antigamente, aquilo parecia faceirice de sua parte: a neve
realçando a frescura de sua tez. É ainda faceirice. A pele endureceu e
fendeu-se, gretada como couro velho, mas o sorriso da boca e dos olhos guardou
sua luz. Apesar dos desmentidos do álbum de fotografias, sua jovem figura se
curva ante seu rosto de hoje: meu olhar não lhe reconhece idade. Uma longa vida
com risos, lágrimas, cóleras, abraços, confissões, silêncios, impulsos, e
parece, às vezes, que o tempo não passou. O futuro se esconde, ainda até o
infinito. Levantou-se: bom trabalho!, disse-me. Para você também: bom trabalho.
Não
respondeu. Nesse género de pesquisas, inevitavelmente, existem períodos em que
se marca passo; ele se resigna menos facilmente que outrora. Abri a janela.
Paris cheirava a asfalto e a tempestade, esmagada pelo calor pesado do estio.
Segui André com os olhos. É, talvez, nesses instantes em que o vejo
distanciar-se que ele existe para mim com mais perturbadora evidência: a
silhueta alta diminui, desenhando a cada passo o caminho de sua volta; ela
desaparece, a rua semelha vazia mas, em verdade, é um campo imantado que o
reconduzirá a mim como a seu lugar natural. Essa certeza me comove ainda mais
que sua presença. Fiquei bastante tempo no balcão. De meu sexto andar descubro
um grande trecho de Paris, o voo dos pombos sobre os tectos de ardósia, e esses
falsos vasos de flores que são as chaminés. Conto as gruas: cinco, nove, dez.
Conto dez, barram o céu com seus braços de ferro vermelhos e amarelos.
À
direita, meu olhar dá de encontro a uma alta muralha crivada de pequeninos
buracos: um edifício novo. Vejo também torres, arranha-céus construídos recentemente.
Desde quando o terreno baldio do Bulevar Edgar-Quinet tornou-se estacionamento?
O aspecto jovem recente da paisagem salta-me aos olhos, todavia não me lembra
tê-la visto diversa. Gostaria de olhar lado a lado para os dois clichês: antes
e depois e me espantar com a diferença. Mas não. O mundo se constrói sob meus olhos
num eterno presente. Habituo-me tão depressa às suas faces que ele não me
parece mudar. Na minha mesa, os fichários, o papel branco, me convidam ao
trabalho, mas as palavras que me dançam na cabeça impedem-me a concentração: Filipe
estará aqui esta noite. Quase um mês de ausência. Entrei em seu quarto onde se
espalham ainda livros, papéis, uma velha malha cinza, um pijama violeta, esse
quarto que eu não me decido a reformar porque não tenho tempo, dinheiro, porque
não quero acreditar que Filipe não é mais meu. Voltei para a biblioteca
perfumada por um ramo de rosas frescas, ingénuas como alfaces. Espantei-me por
este apartamento jamais ter-me parecido deserto. Nada lhe faltava. Acariciei
com o olhar as cores ácidas e ternas das almofadas espalhando-se nos divãs. As
bonecas polonesas, os salteadores eslovenos, os galos portugueses ocupavam,
ajuizadamente, seus lugares. Filipe estará aqui... Fiquei desamparada. Pode-se
chorar de tristeza mas não é fácil conjurar a impaciência da alegria.
Decidi
ir respirar o odor do estio. Um negrão vestido com impermeável azul-eléctrico e
com chapéu de feltro cinza varria a calçada; antes era um argelino cor de
terra. No Bulevar Edgar-Quinet misturei-me a confusão das mulheres. Como não
saio nunca de manhã, a feira pareceu-me exótica (tantos mercados matinais sob
tantos céus!). A velhinha manquitolava de uma banca a outra, suas madeixas bem
puxadas para trás, apertando a alça de sua sacola vazia. Antigamente, eu não me
incomodava com os velhos, tomava-os por mortos cujas pernas andassem ainda.
Agora, eu os vejo: homens e mulheres apenas um pouco mais velhos que eu.
Prestei atenção nesta no dia em que, no açougue, ela pediu restos de carne para
o gato. Para os seus gatos!, disse o açougueiro quando a velha saiu. Ela não
tem gatos. Vai mas é aferventar-se um caldo! O açougueiro achava graça nisso.
Daqui a pouco ela recolherá detritos sob as bancas, antes que o negrão os varra
para o lixo». In Simone de Beauvoir, A Mulher Desiludida, La Femme Rompue, 1967 /
1968, Wikipedia, Difusão Europeia do Livro, 2015, Editora Nova Fronteira.
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