sábado, 18 de fevereiro de 2017

A Mulher Desiludida. Simone de Beauvoir. «Não respondeu. Nesse género de pesquisas, inevitavelmente, existem períodos em que se marca passo; ele se resigna menos facilmente que outrora. Abri a janela»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Meu relógio parou? Não. Mas os ponteiros parecem não andar. Não olhar para eles... Pensar em outra coisa, em qualquer coisa: nesse dia que passou, tranquilo e rotineiro apesar da agitação da espera. Enternecimento do acordar... André estava enrodilhado no leito, olhos vendados, mãos postas contra a parede num gesto infantil, como se no desamparo do sono tivesse necessitado experimentar a solidez do mundo. Sentei-me à borda do leito, coloquei a mão sobre seu ombro. Tirou a venda dos olhos, um sorriso desenhou-se em seu rosto espantado. São oito horas! Coloquei na biblioteca a bandeja da primeira refeição. Peguei um livro recebido na véspera e já folheado pela metade. Cacetes todas essas lengalengas sobre a não-comunicação! Bem ou mal conseguimos nos comunicar, se o queremos. Não com todo o mundo, é claro, mas com duas ou três pessoas. Às vezes, acontece-me não falar a André sobre estados de ânimo, pequenos cuidados, tristezas. Sem dúvida, ele também tem seus segredinhos, mas grosso modo não ignoramos nada um do outro. Derramei nas xícaras chá-da-China bem quente, bem escuro. Bebemos enquanto percorríamos a correspondência: o sol de Julho entrava em caudais no aposento. Quantas vezes ficamos sentados junto à mesinha, em frente um do outro e diante de xícaras de chá bem escuro e bem quente? Será assim, em seguida, em um ano, em dez anos?... Este instante possuía a doçura de uma lembrança e a alegria de uma promessa. Teríamos trinta ou sessenta anos? Os cabelos de André branquearam cedo: antigamente, aquilo parecia faceirice de sua parte: a neve realçando a frescura de sua tez. É ainda faceirice. A pele endureceu e fendeu-se, gretada como couro velho, mas o sorriso da boca e dos olhos guardou sua luz. Apesar dos desmentidos do álbum de fotografias, sua jovem figura se curva ante seu rosto de hoje: meu olhar não lhe reconhece idade. Uma longa vida com risos, lágrimas, cóleras, abraços, confissões, silêncios, impulsos, e parece, às vezes, que o tempo não passou. O futuro se esconde, ainda até o infinito. Levantou-se: bom trabalho!, disse-me. Para você também: bom trabalho.
Não respondeu. Nesse género de pesquisas, inevitavelmente, existem períodos em que se marca passo; ele se resigna menos facilmente que outrora. Abri a janela. Paris cheirava a asfalto e a tempestade, esmagada pelo calor pesado do estio. Segui André com os olhos. É, talvez, nesses instantes em que o vejo distanciar-se que ele existe para mim com mais perturbadora evidência: a silhueta alta diminui, desenhando a cada passo o caminho de sua volta; ela desaparece, a rua semelha vazia mas, em verdade, é um campo imantado que o reconduzirá a mim como a seu lugar natural. Essa certeza me comove ainda mais que sua presença. Fiquei bastante tempo no balcão. De meu sexto andar descubro um grande trecho de Paris, o voo dos pombos sobre os tectos de ardósia, e esses falsos vasos de flores que são as chaminés. Conto as gruas: cinco, nove, dez. Conto dez, barram o céu com seus braços de ferro vermelhos e amarelos.
À direita, meu olhar dá de encontro a uma alta muralha crivada de pequeninos buracos: um edifício novo. Vejo também torres, arranha-céus construídos recentemente. Desde quando o terreno baldio do Bulevar Edgar-Quinet tornou-se estacionamento? O aspecto jovem recente da paisagem salta-me aos olhos, todavia não me lembra tê-la visto diversa. Gostaria de olhar lado a lado para os dois clichês: antes e depois e me espantar com a diferença. Mas não. O mundo se constrói sob meus olhos num eterno presente. Habituo-me tão depressa às suas faces que ele não me parece mudar. Na minha mesa, os fichários, o papel branco, me convidam ao trabalho, mas as palavras que me dançam na cabeça impedem-me a concentração: Filipe estará aqui esta noite. Quase um mês de ausência. Entrei em seu quarto onde se espalham ainda livros, papéis, uma velha malha cinza, um pijama violeta, esse quarto que eu não me decido a reformar porque não tenho tempo, dinheiro, porque não quero acreditar que Filipe não é mais meu. Voltei para a biblioteca perfumada por um ramo de rosas frescas, ingénuas como alfaces. Espantei-me por este apartamento jamais ter-me parecido deserto. Nada lhe faltava. Acariciei com o olhar as cores ácidas e ternas das almofadas espalhando-se nos divãs. As bonecas polonesas, os salteadores eslovenos, os galos portugueses ocupavam, ajuizadamente, seus lugares. Filipe estará aqui... Fiquei desamparada. Pode-se chorar de tristeza mas não é fácil conjurar a impaciência da alegria.
Decidi ir respirar o odor do estio. Um negrão vestido com impermeável azul-eléctrico e com chapéu de feltro cinza varria a calçada; antes era um argelino cor de terra. No Bulevar Edgar-Quinet misturei-me a confusão das mulheres. Como não saio nunca de manhã, a feira pareceu-me exótica (tantos mercados matinais sob tantos céus!). A velhinha manquitolava de uma banca a outra, suas madeixas bem puxadas para trás, apertando a alça de sua sacola vazia. Antigamente, eu não me incomodava com os velhos, tomava-os por mortos cujas pernas andassem ainda. Agora, eu os vejo: homens e mulheres apenas um pouco mais velhos que eu. Prestei atenção nesta no dia em que, no açougue, ela pediu restos de carne para o gato. Para os seus gatos!, disse o açougueiro quando a velha saiu. Ela não tem gatos. Vai mas é aferventar-se um caldo! O açougueiro achava graça nisso. Daqui a pouco ela recolherá detritos sob as bancas, antes que o negrão os varra para o lixo». In Simone de Beauvoir, A Mulher Desiludida, La Femme Rompue, 1967 / 1968, Wikipedia, Difusão Europeia do Livro, 2015, Editora Nova Fronteira.

Cortesia ENFronteira/JDACT