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O
Mosteiro dos Enganos
«(…)
Ignazio limitou-se a esboçar um gesto compreensivo, sem transformar a conversa
num interrogatório. Tinha a certeza de que as revelações não tardariam,
bastando para tal uma conversa pacífica. O monge, talvez arrependido por ter
falado de mais, baixou os olhos. Vinde, disse, como se quisesse acolhê-lo na sua
própria casa. Permiti que vos mostre a biblioteca. A biblioteca do Castrum Abbatis
estava pouco cuidada. A humidade alastrava por todo o lado, apesar de as janelas
garantirem um discreto arejamento. Gastos pelo tempo e pelo uso, os livros emanavam
um cheiro a mofo que tornava o ar irrespirável. Espreitando por entre as portas
dos armaria, Ignazio reparou nas obras de Agostinho e de Isidoro de
Sevilha, de Gregório Magno e de Ambrósio. A maior parte das obras respeitava às
Sagradas Escrituras, mas também havia autores pagãos como Séneca e Aristóteles.
O mercador ia folheando os livros, lia frases soltas e simultaneamente citava textos
que naquela biblioteca não existiam, obras raras de temas bizarros que Gualimberto
não conhecia. O bibliotecário ouvia-o com atenção, perguntando-se quem seria na
realidade o indivíduo que tinha à sua frente. O acento da sua fala era indefinível:
talvez castelhano, pensara, mas tingido de vagas inflexões mouriscas. Tendes muita
preparação, admitiu a dada altura. Dizei-me, onde estudastes? No Studium de Toledo,
respondeu o mercador, assoprando os dedos cheios de pó. Usufruí dos benefícios dos
ensinamentos de Gherardo Cremona. O famoso Gherardo, que se recolheu em Espanha
para estudar os textos ocultos dos mouros! Um grande magíster, exclamou
o monge quase eufórico. Então deveis ter sido seguramente iniciado nos mistérios
da alquimia e das ciências herméticas. Aos lábios de Ignazio aflorou um sorriso
dissimulado. Por favor, padre, mudemos de assunto, peço-vos. É melhor evitarmos
certos temas.
Gualimberto
pareceu desiludido. Tendes razão. No entanto quero prevenir-vos: homens do vosso
talento são frequentemente mal compreendidos e tornam-se presas fáceis em lugares
como este. Não confieis em ninguém, no mosteiro. Sobretudo, não confieis em
Rainerio Fidenza. É a segunda vez que o dizeis. Ignazio devolveu-lhe um olhar inquiridor.
Tendes provas sobre a sua má-fé, ou apenas suspeições? Falai sem medo. – Suspeições?
As mesmas que vós tereis, imagino. Os lábios carnudos de Gualimberto fecharam-se
num sorrisinho maroto. Aposto que não acreditastes na história da morte de Maynulfo
Silvacandida. O que pensais? Que se trata de uma patranha. Maynulfo não teria
morrido com o gelo do Inverno. Rainerio mentiu-vos, como, de resto, o fez com toda
a gente. São acusações graves. E dizei-me, o que terá acontecido ao velho? Ninguém
viu o cadáver, excepto Rainerio. Os olhos do monge arregalaram-se, subitamente,
febris. Diz-se que Maynulfo foi morto enquanto rezava no ermo..., e que o seu corpo
terá sido escondido dos olhares dos confrades, uma vez que evidenciava sinais de
ferimentos infringidos.
Tocado
com esta conversa, Ignazio agarrou Gualimberto pelo braço e puxou-o para ele com
um gesto enérgico. O monge estremeceu com a surpresa e opôs resistência, mas a força
do interlocutor era muita e não conseguiu libertar-se. Depois ouviu a voz do
mercador sussurrar-lhe ao ouvido, e então compreendeu que ele não o abordava numa
atitude de ameaça mas de confidencialidade. E alguém sabe quem terá sido o responsável?,
perguntou-lhe Ignazio. Não, apressou-se a responder o bibliotecário. O torno que
o prendia apertou-o mais ainda, convidando-o a prosseguir. Mas..., antes da morte
de Maynulfo, Rainerio acolheu na hospedaria uma figura estranha, um frade com um
rosto desfigurado. Poucos o viram. Desapareceu depois da morte do velho abade,
sem deixar rasto. Ignazio libertou a presa. O nome? Gualimberto recuou e baixou
os olhos. Procurei entre as cartas de Rainerio… Sei que não o deveria ter feito,
mas a curiosidade prevaleceu sobre a contenção». In Marcello Simoni, O Mercador de
Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor,
Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.
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