Cortesia
de wikipedia e jdact
O fascismo dos bons homens
«(…)
Podia ser um modo de explicar todos os Silvas, dizia ele rindo, grassando como
o mato e bons homens, a explicação de todos os Silvas, e a minha mulher,
perguntei eu. não me pode ajudar a saber alguma coisa sobre a minha mulher, ele
atordoou-se um bocado, como a sair de um estado de hipnose qualquer, e
perguntou, que posso eu fazer, a mim não me dão satisfações, sou só um
auxiliar, lá de fora ouviu-se um estalo seco no céu, como se um vidro baço
quebrasse finalmente, pronto a deixar passar a chuva, vai chover, disse aquele
Silva da Europa. Calei-me, voltei à janela com uma necessidade profunda de sair
dali. Subitamente um médico entrou na pequena sala e veio ao meu encontro,
senhor António Silva, respondi que sim. A sua mulher encontra-se bem, estamos
ainda à espera do resultado de alguns exames, agora encontra-se apenas a
dormir, foi sedada, pelo que não acordará tão cedo e nós vamos querer que ela
passe cá esta noite, eu sorri como uma criança perdida a quem se dá a mão. Não
posso ficar também, perguntei, o médico, já afastado de mim, disse que não e desapareceu,
neste serviço não. O Silva da Europa comentou, para eles é tudo mais fácil,
sentem pelas pessoas um cuidado profissional, é como tratar de plantas,
rigorosamente igual, que eu bem vejo que nem escutam o que se lhes diz, nem que
o paciente gema ou grite, eles lêem os papéis e as chapas que imprimem, olham
para a cor das pessoas e decidem o que lhes apetecer, mas não se preocupe,
sabem o que fazem e até têm coração, que eu bem os entendo, mas não posso
voltar para casa sem ela. Não a posso deixar aqui sozinha, não estaria sozinha,
estaria sozinha de mim, que é a solidão que me interessa e a de que tenho medo.
E isso nunca aconteceu, não, em quase cinquenta anos de casados, nunca
aconteceu, também foi uma sorte, sim, foi uma sorte, não seja por isso, disse
ele, se tiver paciência para a minha companhia, fique por aqui ao pé. Simpatizo
consigo, falo com os seguranças e passa cá a noite a ver-me preencher
formulários e a ouvir a chuva, ainda lhes digo que é um primo, podíamos ser
primos, que idade tem. Acabei de fazer oitenta e quatro, espantoso, olhe que
não parece, eu tenho sessenta e cinco e vou para casa no próximo mês, que já
trabalhei para me fartar e agora quero mordomias. A chuva abrira violentamente
pelo mundo fora. Vinha de encontro às vidraças como se contivesse em si um
monstro dentado esforçando-se por tragar-nos, caí para a cadeira ao pé da
secretária, onde o outro recomeçava o seu trabalho, e senti-me encurralado. E a
reforma é que devia vir mais cedo. Antes das dores nas costas e da perda de
jeito para conduzir, eu já não conduzo nada. Fico encandeado com as luzes e
confunde-me o barulho e a gente a vir de todos os lados, mas nem pode imaginar
como me apetece ficar por aí sem ter o que fazer, só a passear e a comer coisas
frescas, estou mais farto destas tarefas, sou o rabo desta máquina, o cu… da
máquina, entende, a porcaria que ninguém quer fazer, esta porcaria, vem toda
aqui parar à minha mesa. E, enquanto olho por quem entra ou deve entrar,
despacho a vida como se tivesse vontade de a despachar à pressa. Eu sou
daqueles a quem a vida doeu e, mais cedo me possa estender a descansar, mais
feliz me ponho, isto por aqui é muito bom para quem começa e tem saúde, mas
para nós, os mais velhos, já é uma tristeza vir para cá ver quem adoece e quem
morre, é todos os dias a mesma coisa, estamos nisto para morrer, não tenha
dúvidas, e não há milagre que para aqui mande anjos ou santos a ressuscitar
ninguém, quem já foi, já foi, e não volta, que eu aqui é que bem o vejo. Sem
piedade pelos justos ou bondosos, ficam branquinhos igual aos maus ou sovinas e
cabem nos mesmos caixões e, sabe o que é incrível, levam dos padres as mesmas
encomendas nos sermões, tudo à medida, para provar que vamos todos para pó e
somos uma valentia exactamente igual e mais nada. E se esta chuva ganhar um
bocado mais de força, vai entrar por aqui adentro, não se admire, já aconteceu,
uma vez deu para aí uma tempestade que até parecia raivosa connosco, andou a
fazer estragos, nas redondezas, quero eu dizer, mas quando chegou ao hospital
parecia que conhecia cá alguém, Nossa Senhora do Leite, pôs-se a bater de tal
maneira nos vidros que, ao fim de uns minutos, nem sei como foi, racharam uns
quantos e, aqui diante de nós, a coisa teve tal intensidade que só não morri
laminado em dois porque pressenti o ataque e escondi-me lá para o fundo a ver
no que dava. Agora é diferente, está tudo reforçado, isto não parte com
qualquer pancada, fique descansado, nem que esta tempestade o conheça a si, não
o há-de apanhar cá dentro, estava só a assustá-lo um bocadinho. Acha que os
carros estão seguros, perguntei eu. Não sei, respondeu, hoje acredito que se
ponham para aí a flutuar como barquitos até meterem água boa para irem ao
fundo, qual é o seu, quis ele saber, aquele, aquele cinzento já meio velho, se
lhe der a água, leve como é, vai deslizar facilmente. Não pense nisso,
sente-se, senhor Silva, sente-se e tome um café. Se quiser, está ali uma
máquina nova que tira cafés e não são nada mal tirados, este hospital está
feito com os pés. Como é que se arranja um parque para os carros que se
transforma numa piscina com o temporal, ui, isto já foi feito há muito, estava
bom era para ser mandado abaixo, havia de ir tudo abaixo e começar-se outra vez
com outra vergonha na cara». In Valter Hugo Mãe, A Máquina de Fazer
Espanhóis, Porto Editora, 2016, ISBN 978-972-004-733-5.
Cortesia
de PortoEditora/JDACT