domingo, 26 de fevereiro de 2017

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Donzelas, encontrei-me numa bela manhã,  em meados de Maio, num verde jardim»

jdact

O Homem de Alexandria e a Pedra Filosofal
«(…) Ali, no seu jardim, por detrás dos terrenos onde, mais tarde, João, o Rei perfeito e odiado por tantos, erigiu o hospital sob a devoção de Todos-os-Santos, mestre Tadeu construíra o seu Éden para apetrechamento da sua botica que, também, era a parte aparente do seu laboratório de Adepto secreto, de buscador da verdade e de mim mesmo, cabritinho. Que pena, mestre Tadeu, tu reres partido já e me teres deixado! Há instantes na nossa vida, só porque conhecemos alguém que o destino fez cruzar nosso caminho, que valem todo o seu percurso. O horto de mestre Tadeu faz-me recordar um poeta, Poliziano:

«Donzelas, encontrei-me numa bela manhã,
em meados de Maio, num verde jardim.
À minha volta havia violetas e lírios,
entre a erva verde. e graciosas flores novas
azuis, amarelas, brancas e vermelhas:
pus a minha mão no coração delas
para enfeitar meus cabelos ruivos...»

Meus cabelos são louros e mestre Tadeu colocou a mão sobre a minha fronte, olhou-me nos olhos e afirmou, com aquele sorriso leve a aflorar-lhe a boca carnuda, muito vermelha: aguenta-te, rapaz. Vamos tratar disto. Podia ser pior. Depois saiu. Meu tio Gil, que o trouxera, afagou-me o rosto: calma, filho, o homem de Alexandria, às vezes, faz milagres. Só mais tarde soube que os físicos mais importantes do Ocidente tinham de passar por Alexandria. Até hoje. A velha escola médica ainda funciona. Não sei se o bom Tadeu me concedeu o privilégio de me oferecer as goras mágicas que retirou do tubo de vidro onde destilava o espírito do mercúrio, do enxofre, do arsénio e do sal amoníaco, como ensinou Vicente Beauvais, ou me ofereceu o reflexo da matéria-prima através daquela beberagem insípida que ingeri durante sete dias de mistura com as gotas de orvalho destiladas pelo filtro das madrugadas. Não sei se mestre Tadeu retirou a sabedoria do Talmude, das palavras mágicas de Salomão ou dos livros cobertos de pó do seu Scriptorium, por onde exercia nos domínios da memória a aprendizagem diária do seu saber.
Não sei, nem me interessou na altura, se foi com o auxílio de Matthaeus Sylvaticus ou de Nicolau Myrepso ou de Avicena, que ele me recambiou a maldita doença. Uma manhã vi que a urina que vertia para o pote de cobre e que a minha mãe despejava numa tigela de barro claro, para observar se continha sangue, estava clara, levemente amarelo-acastanhada, mas que o sangue vermelho já não deixava depósito no fundo em borras escuras. Mais três dias, deixei de ter dores e fiquei são. A febre desapareceu. Quase a chorar, agarrei-me a ele, percorrido pela gratidão. Sorridente, afastou-me: calma, rapaz. Fiz isso por ti, mas que ninguém saiba. Fi-lo pela tua juventude, pelos teus, pelo teu tio. Não quero problemas. Por uma coisa destas uma familiar minha foi queimada em Espanha. Por lá ainda é pior o ódio ao médico judeu. A desgraçada curou um frade e, sobre a mezinha, fez uma reza, uma oração banal. O malandro salvou-se mas denunciou-a como feiticeira. Foi queimada com os livros todos que tinha na botica. Agora deixa-te de histórias com rameiras. Que te fique de emenda. Podia ser pior. Estás curado.
Ainda pensei ir para Pisa, pois soubera da transferência da Universidade de Florença para lá. Isto foi no ano em que Ivan III de Moscovo casou com a neta do infeliz derradeiro imperador bizantino e declarou Moscovo a Terceira Roma, e, em Agosto, a Princesa dona Joana foi para o convento de Aveiro. Toda a Élente se espantou. Primeiro
Odivelas, depois Aveiro. O príncipe não gostou e tentou tudo para a convencer do contrário. Estávamos informados através de João da Paz, ainda apenas Yacoub, e de Isaac Abravanel, responsável pelas finanças e também conselheiro, nesse capítulo, do duque de Bragança. A ida de dona Joana para o Convento das Dominicanas foi um choque muito profundo para o irmão». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de EPresença/JDACT