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O
desejo de uma mulher
«(…)
A sua filha mais velha, a infanta doña Isabel Clara Eugenia, estava de pé,
atrás do trono. É um segredo mal guardado, o facto de a Infanta ser o
conselheiro mais chegado do rei, bem como a sua filha preferida. Tem doña
Isabel os olhos verdes e inteligentes do pai, mas o seu rosto cheio e jovial é
muito mais caloroso. O cabelo castanho, trazia-o firmemente apanhado num rolo
sobre a nuca. Cobria-o um toucado preto com um rebordo de pérolas, dornado por
uma pena de avestruz e um alfinete de pedrarias. Fiz uma vénia e aguardei de
cabeça baixa, como à espera da lâmina do carrasco. O aroma a laranja e alperce
do perfume da Infanta acalmou a minha respiração agitada. Perturbando o
silêncio pomposo, o vulto enorme do marquês destacou-se da multidão para me
apresentar. Mais urso que homem, tem um peito poderoso, com a largura de dois,
porém dirigiu-se agilmente para o trono. A sua estatura e rapidez fazem do meu
mentor e amigo um adversário mortífero em duelo. Vestia de negro, como o rei,
mas as suas roupas elegantes ostentavam rendas de prata e ouro. As pontas do
seu bigode encerado apontam para cima, ao passo que a barba serpentina desce em
espiral. O cabelo, que vem perdendo, revela muito do seu crânio. O nariz e as faces,
como sempre, estavam vermelhos, fruto de muitas e lautas refeições e de
incontáveis garrafas de vinho. Na vida de um homem, disse-me certa vez, vem um
tempo em que a comida se torna mais apetecível que a mulher. Rezei por que, na
minha vida, tal dia jamais chegasse.
Majestade,
tenho o privilégio de vos apresentar don Juan Tenorio, vosso súbdito fiel. Da
fé que o faz fiel será o inquisidor a ajuizar, resmoneou o rei, fazendo a multidão
chilrear de gozo e a minha espinha arrepiar-se abominavelmente. A dar ouvidos
às histórias que correm na corte, prosseguiu o rei, pousando agora em mim o olhar,
seria levado a pensar que sois algum demónio. Apenas um homem, Majestade, respondi.
As falas da corte fazem de qualquer homem um demónio. Ergui de relance o olhar
e vi que o rei não pôde reprimir um ténue sorriso. Mais que ninguém, é ele
vítima da maledicência e mesquinhez dos cortesãos. Disseram-me, continuou, que
íeis anunciar esta noite o vosso noivado. O meu rosto deve ter traído a minha surpresa
quando olhei para o marquês, cujo sobrolho, agora arqueado, revelava não ter
sido ele a origem de semelhante rumor. Ter-me-ão enganado?, perguntou o rei. Iludem-vos
os meus inimigos, Majestade. Não sucedeu enamorar-me. A Infanta debruçou-se e
sussurrou qualquer coisa ao ouvido do pai. Diz a minha filha que o casamento
não tem por força que ver com amor.
A
vossa filha tem a vossa sabedoria, Majestade, disse, pondo os olhos, para lá do
rei, nos da Infanta. Embora já com vinte e sete anos, ainda vive com o seu
idoso pai. A mãe, casada aos quinze anos com o nosso rei para unir Espanha e
França, morreu dois anos depois do nascimento de doña Isabel. Mesmo a irmã mais
nova e sua única confidente, Catalina, já casou, há oito anos, com o duque de Sabóia.
A Infanta aceitaria, sem dúvida, casar sem amor, contanto que o pretendente tivesse
o título certo, o que não é naturalmente o meu caso». In Douglas Carlton Abrams, O
Diário Perdido de Don Juan, 2007, Editorial Presença, Lisboa, 2007, ISBN
978-972-233-768-7.
Cortesia
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