domingo, 5 de fevereiro de 2017

O Substituto. Philippa Gregory. «Quem chegou a ele? Árabes, mouros, otomanos..., chame-os como quiser. Maometanos, muçulmanos, infiéis, nossos inimigos, nossos novos conquistadores...»

wikipedia e jdact

Castelo Sant’Angelo. Roma. 1453
«(…) Meu pai achou que eu tivesse um dom, um dom divino. Não é tão incomum. Tentou explicar. Freize, o criado, é muito bom com animais, consegue o que quiser com cavalos e pode montar qualquer animal. Meu pai pensou que eu tivesse um dom parecido, mas para os estudos. Queria que eu fosse mais que um lavrador, queria que me saísse melhor. O inquisidor recostou-se na cadeira, como se estivesse cansado de ouvir ou já tivesse ouvido mais que suficiente. Pode se levantar. Ele analisou o papel com as poucas anotações em tinta preta enquanto Luca se colocava de pé. Agora responderei às perguntas que você deve ter em mente. Sou o comandante espiritual de uma Ordem nomeada pelo Santo Padre, o próprio papa, e reporto nosso trabalho a ele. Não precisa saber o meu nome ou o nome da Ordem. O papa Nicolau V ordenou que explorássemos os mistérios, as heresias e os pecados, que os explicássemos, sempre que possível, e os derrotássemos, quando pudermos. Estamos mapeando os medos do mundo, viajando de Roma para os confins da cristandade a fim de descobrir o que as pessoas dizem, o que temem e contra o que lutam. Precisamos saber por onde anda o diabo neste mundo. O Santo Padre sabe que estamos nos aproximando do fim dos tempos. O fim dos tempos? Quando Cristo voltará para julgar os vivos, os mortos e os mortos-vivos. Já deve saber que os otomanos tomaram Constantinopla, o coração do Império Bizantino, o centro da Igreja no Oriente. Luca fez o sinal da cruz. A queda do centro oriental da Igreja para um exército invencível de hereges e infiéis era a coisa mais terrível que poderia ter acontecido, um desastre inimaginável. Em seguida, as forças das trevas se erguerão contra Roma, e, se Roma cair, será o fim dos tempos, o fim do mundo. Nossa tarefa é defender a cristandade, defender Roma, neste mundo e no outro, desconhecido.
Desconhecido? Ele está a nossa volta, respondeu o homem, categórico. Eu o vejo, talvez, com a mesma clareza com que você vê os números. E todo ano, a cada dia, ele se aproxima mais e mais. As pessoas me contam sobre chuvas de sangue, um cão que pode farejar a peste, bruxaria, luzes no céu e água que é vinho. O fim dos tempos se aproxima, e há centenas de manifestações do bem e do mal, milagres e heresias. Um jovem como você talvez possa me dizer quais são verdadeiros e quais são falsos, o que é obra de Deus e o que vem do Diabo. O inquisidor levantou da grandiosa cadeira de madeira e empurrou uma folha de papel em branco para Luca. Vê isto? Luca analisou as marcas no papel. Era a escrita de hereges, o estilo mouro de grafar números. Quando criança, Luca aprendera que um risco, I, significava um; dois riscos, II, indicavam dois; e assim por diante. Mas estas formas eram redondas e estranhas. Ele já as tinha visto, mas os mercadores de sua aldeia e o esmoler do mosteiro se recusavam terminantemente a usá-las, atendo-se ao estilo antigo. Isto significa um: 1. Já este, dois: 2. Este, três: 3, explicou o homem, apontando as marcas com a ponta da pena preta. Se colocar o 1 aqui nesta coluna, significa um. Mas se colocá-lo aqui, com este espaço ao lado, quer dizer dez. E, se colocá-lo aqui, com dois espaços ao lado, significa cem. Luca ficou espantado. A posição do número indica seu valor? Exactamente. O homem usou a pluma preta para apontar o formato do vazio, parecido com um O alongado, que enchia as colunas. Estendeu o braço para fora da manga e Luca olhou do O para a pele branca da parte interna do pulso do homem. Tatuadas em seu braço, como se tivessem sido esculpidas na pele, Luca pôde ver a cabeça e a cauda retorcida de um dragão, um desenho de um dragão enroscado em si mesmo, em tinta vermelha.
Isto não é apenas um vazio, não é apenas um O: é o que chamam de zero. Veja a posição que ele ocupa, ela tem um significado. Mas qual é esse significado? Ele representa um espaço?, indagou Luca, encarando o papel outra vez. Quero dizer: nada? É um número como outro qualquer, respondeu o homem. Eles criaram um número para o nada. Assim, podem calcular o nada e ir além dele. Além? Além do nada? O homem apontou para outro número: 10. Isto está além do nada, está dez lugares além do nada: isto quantifica a ausência, respondeu. Luca, com a mente girando, estendeu a mão para o papel, mas o homem puxou-o de volta depressa e o cobriu com a mão larga, protegendo-o de Luca, como se fosse um prémio que ele precisaria merecer. A manga voltou a cair sobre o pulso, escondendo a tatuagem. Sabe como chegaram a este sinal, ao número zero?, perguntou. Luca negou, balançando a cabeça. Quem chegou a ele? Árabes, mouros, otomanos..., chame-os como quiser. Maometanos, muçulmanos, infiéis, nossos inimigos, nossos novos conquistadores... Mas sabe como chegaram a este sinal? Não. É a forma de um sulco na areia quando os contadores são retirados. É o símbolo do nada, se parece com o vazio e é isso o que simboliza. É assim que eles pensam, e é isso o que temos de aprender com eles. Não entendo. O que é que temos de aprender? A olhar, olhar e olhar. É isso que eles fazem: olham para tudo, pensam em tudo e, por isso, viram estrelas no céu que nunca conseguimos ver. É por isso que fazem remédios de plantas que jamais percebemos». In Philippa Gregory, O Substituto, 2012, Editora Galera Record, colecção Ordem da Escuridão, 2015, ISBN 978-850-140-319-3.

Cortesia de EGRecord/JDACT