domingo, 26 de fevereiro de 2017

Casanova Revisitado. Susan Swan. «Mantido unido por fita gomada, o muito manuseado livrinho de alegres axiomas listava mais de 230 entradas, incluindo a recomendação de lord Byron»

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«(…) É melhor enterrarmo-nos em casa e evitar um desastre como o que vitimara a sua mãe, na Grécia. Se não fosse pela sensação incómoda de que devia à mãe e a ela própria conhecer a ilha em que Kitty morrera, nunca teria deixado Lee pagar-lhe a viagem para o cerimonial fúnebre em Creta. E, evidentemente, ficara intrigada quando a tia lhe pedira para entregar os documentos na Biblioteca Sansoviniana, em Veneza. Fora a primeira vez que a tia Beatrice tomara a sério o trabalho de Luce como arquivista e sentia-se orgulhosa por lhe ter sido concedido o papel de guardiã dos documentos da família.
Voltou a colocar o diário, cuidadosamente, na sua caixa de arquivo, juntamente com as fotocópias e o manuscrito árabe. Pela janela, avistava filas de telhados de terracota, brilhando ao sol da manhã. Afinal, acabaria por ser um dia ensolarado. Fechou as cortinas e começou a despejar a mochila, comprada numa loja de campismo local. Primeiro, o kit de pêndulo que a mãe lhe oferecera alguns natais antes. Depois, o seu monte de livros. A par de As Pedras de Veneza e o seu Guia Básico de Veneza, trouxera alguns ensaios sobre Casanova, um texto encadernado, Casanova: o Homem Que Realmente Amava as Mulheres, por Lydia Flem, e uma bastante manuseada cópia do primeiro volume de História da Minha Vida, por Jacob Casanova, descrevendo a sua infância veneziana. Tivera de deixar em casa os outros volumes de memórias, assim como uma estimada cópia do seu único romance, Icosameion, uma fantasia de ficção científica surpreendentemente moderna, acerca de uma nova raça humana que vivia nas entranhas da terra. Em seguida: uma pequena mala de roupa com a maquilhagem da mãe, que ainda retinha o aroma do perfume dela. Alinhou os livros no parapeito da janela e começou a arrumar as suas roupas novas. Não eram do seu estilo habitual, mas pretendera algo de mais vivo, para aliviar o espírito. Pendurou três blusas de chiffon semitransparentes e três vestidos coleantes e voltou a dobrar cuidadosamente os minúsculos tops de licra e as lindas calças Malibu brancas que comprara para usar na Grécia.
Seguindo o conselho de Lee, emalara também um cachecol de lã e a sua camisola favorita, um patchwork de coloridas sedas chinesas cosidas nos ombros, porque Veneza era fresca na Primavera. Inesperadamente, os dedos fecharam-se sobre a figurinha que Lee lhe oferecera naquela manhã e ela empurrou-a mais para o fundo da mochila. Luce não soube quanto tempo dormiu. Vestiu um par de calças de ganga e a camisola favorita, depois voltou a tirar o diário da sua antepassada de dentro da caixa. Devia levá-lo com ela? Usar a cópia de leitura fornecida por Charles Smith não pareceria tão pessoal. As suas folhas soltas, fotocopiadas, não ostentavam a tinta original, a impressão da mão de um escritor. Embora soubesse que não devia, não conseguiu resistir. Embrulhou o diário no tecido sem ácido da caixa de arquivo e colocou-o dentro de uma mochila pequena. Foi à recepção procurar as instruções que Lee lhe deixara e percorreu as ruas de Veneza transportando o diário da sua antepassada.
Já era um pouco tarde para usar óculos de sol, mas ela tinha falta de vista e precisava das lentes para ver à distância. Na praça, deparou com uma celebração. Uma figura de vestes vermelhas e rendas caminhava, oscilante, em direcção à basílica, carregando uma cruz de ouro do tamanho de uma pessoa. A figura escarlate era seguida por uma grande multidão de homens, mulheres e crianças, cantando um hino em latim. Sentiu um ligeiro temor, como se observasse um misterioso rito antropológico. A tia Beatrice era o último membro da família a crer numa doutrina cristã formal. Insistira em levar Luce, quando esta era pequena, aos serviços anglicanos e mostrara-lhe, orgulhosamente, o antigo exemplar de família de A Boa Noite do Optimista. Mantido unido por fita gomada, o muito manuseado livrinho de alegres axiomas listava mais de 230 entradas, incluindo a recomendação de lord Byron, segundo a qual fazer o seu melhor é o caminho para a bênção.
Havia a mãe, claro, mas o tipo de religião que esta professava não era nada a que se pudesse chamar cristão. E, de qualquer forma, suspeitava de que uma auto-ilusão premeditada se ocultava no seio de todas as convicções religiosas, um deliberado pôr de lado aquilo que é verdade, em favor daquilo que o crente necessita que seja verdade, semelhante à suspensão da descrença durante um filme ou uma peça de teatro. Virando as costas à basílica, seguiu as instruções de Lee e deu por si no restaurante Da Raffaele. Saiu para o terraço, com mesas dispostas ao longo do canal, e viu o jovem fotógrafo do táxi aquático a beber um cappuccino. Vestia algo que pareceu a Luce um fato de mágico: um casaco preto que lhe assentava mal, com lapelas brilhantes, e também um ligeiro brilho nas costuras dos ombros. A enorme máquina fotográfica repousava na cadeira a seu lado. Pôs-se de pé, sorrindo, e ela virou-se timidamente, fingindo não o ver. Menina!, gritou ele e, quando ela se virou, impressionada pela sua persistência, uma explosão de luzes floresceu por trás da cabeça dele, como relâmpagos minúsculos, vários flashes simultâneos que iluminaram a sua bonita expressão devoradora». In Susan Swan, Casanova Revisitado, 2005, tradução de Fernanda Semedo, Editorial Estampa, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-332-345-0.

Cortesia de EEstampa/JDACT