quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A Máquina de Fazer Espanhóis. Valter Hugo Mãe. «O homem interrompeu o silêncio para me explicar que também se chamava Silva, Cristiano Mendes Silva, e eu imediatamente pensei em nós dois como a frente e o verso»

Cortesia de wikipedia e jdact

O fascismo dos bons homens
«Somos bons homens, não digo que sejamos assim uns tolos, sem a robustez necessária, uma certa resistência para as dificuldades, nada disso, somos genuinamente bons homens e ainda conservamos uma ingénua vontade de como tal sermos vistos, honestos e trabalhadores, um povo assim, está a perceber, pousou a caneta, queria tornar inequívoca aquela ideia e precisava de se assegurar da minha atenção, não tenho muita vontade de falar, sabe, senhor, estou um pouco nervoso, respondi, não se preocupe, continuou, a conversa é mais para o distrair e, se ficar distraído sem reacção, também não lho levo a mal. É o que fez a liberdade, acrescentou, um dia estamos desconfiados de tudo, e no outro somos os mais pacíficos pais de família, tão felizes e iludidos, e podemos pensar qualquer atrocidade saindo à rua como se nada fosse, porque nada é. As ideias, meu amigo, são menores nos nossos dias. Não importam, as liberdades também fazem isso, uma não importância do que se pensa, porque parece que já nem é preciso pensar, sabe, é como não termos sequer de pensar na liberdade, é um dado adquirido, como existir oxigénio e usarmos os pulmões, não nos hão-de convencer que volte a censura, qualquer tipo de censura, isso seria uma desumanidade e agora somos europeus, qualquer iniquidade do nosso peculiar espírito há-de ser corrigida pela Europa, para sempre, isto é que é uma conquista, e é como respirar, existir oxigénio e usarmos os pulmões, não se mete requerimento, faz-se e fica feito e não passa pela cabeça de ninguém que seja de outro modo. Eu estava impaciente, abanava a cabeça como se concordasse, que era o meu modo de atalhar pela conversa com maior rapidez e sem enlouquecer, a Laura não recebia alta e os médicos iam e vinham sem me atenderem por um minuto que fosse, o homem voltava a usar a caneta nos formulários intermináveis que preenchia, e repetia, se não dermos nas vistas, podemos passar uma vida inteira com os piores instintos, e ninguém o saberá, com a liberdade, só os cretinos mais incautos passaram a ser má gente, tudo o resto preza-se e cabe na sociedade de queixo erguido, e isso leva-nos a quê, perguntei eu. A quê, retorquiu, exultante pelo meu aparente interesse, sim, respondi algo provocador, o que quer dizer com isso, na verdade, na prática, o que significa uma afirmação toda ensimesmada dessas, ele voltou a pousar a caneta, pôs-se de pé com ar de quem faria um rodeio interminável mas, depois da hesitação, foi directo ao assunto, respondeu, num tempo em que todos somos bons homens a culpa tem de atingir os inocentes, pensei nos inocentes, não sou um homem piedoso, não; há inocentes, o senhor, se não se importa, vai ver como está a minha mulher, já cá entrámos há duas horas e para uma má disposição depois do lanche começa a parecer-me muito tempo, tenha calma, senhor, tenha calma, isto por aqui anda pelas horas de deus. Não acredito em Deus, respondi-lhe, chegam-me os homens, e ele retorquiu, e acha que acredito eu. Não. É só um modo de falar, deitamos mão ao que diz o povo e falamos sem pensar, fui para ao pé da janela, estava um dia turvo, não coberto de nevoeiro, mas de uma claridade espessa, difícil de transpor, a queimar os olhos ameaçando uma tempestade para breve, ele levantou-se também e disse, ficou abafado, odeio estes dias. Respondi, como eu. Ele volveu. Não ficou aborrecido com a nossa conversa, senhor Silva, pois não. Eu disse que não. São coisas tolas de quem pensa muito na vida, insistiu, porque na morte dá medo pensar, não se canse, também penso, e neste momento, como sabe, preocupo-me com a vida da minha mulher, ficámos um instante a perscrutar o exterior como se quiséssemos que enfim desabasse aquele céu pesado, mas não aconteceu nada. O homem interrompeu o silêncio para me explicar que também se chamava Silva, Cristiano Mendes Silva, e eu imediatamente pensei em nós dois como a frente e o verso, eu, António Jorge  Silva, e ele, o Silva da Europa, o peito inchado de orgulho como se tivesse conquistado tudo sozinho, continuou, somos todos Silvas neste país, quase todos, crescemos por aí como mato, é o que é. Como as silvas, somos silvestres, disse eu, obrigado a sorrir já como quem suplica uma trégua, exactamente, concordou, assim do mato, grassando pelo terreno fora com cara de gente, mas muito agrestes, sem educação nenhuma, eu torci a cara e não respondi, depois não resisti a acrescentar, olhe que somos gente educada, e ele quase me repreendeu, mas a educação tem sido apertada neste país, à paulada, ou não lhe parece, achei que aquele Silva era um imbecil dos grandes e que me estava a empatar as energias com retóricas a chegar a um ponto em que a irritação me fazia agir contra a vontade de estar quieto. E ele insistiu, já no limite, mas somos bons homens, podemos acreditar no que quisermos, seremos sempre bons homens, nós, os portugueses, somos mesmo, ponha isso na sua cabeça, colega Silva, e a mim ninguém me apanha diminuído como outrora, somos europeus, eu sou um Silva da Europa, isso é que ainda há muitos que não o são, só porque ainda não o aceitaram ou não o perceberam, mas, sabe o que lhe digo, é inevitável, vai chegar a todos, é tempo, é tempo, um dia seremos cidadãos de um mesmo mundo, iguais, todos iguais e felizes nem que seja por obrigação, estamos a alastrar, como nos compete, e um dia ainda deixaremos de ser silvestres, agrestes, isso de ir como o mato, porque estaremos cada vez com melhores maneiras, sofisticados e cheios de nuances de interesse, subtilezas como as que assistem aos grandes caracteres, um dia, caramba, estaremos até cheios de razão». In Valter Hugo Mãe, A Máquina de Fazer Espanhóis, Porto Editora, 2016, ISBN 978-972-004-733-5.

Cortesia de Porto Editora/JDACT