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«(…)
Para além das possibilidades precárias, dependendo de acasos favoráveis que asseguram
a posse do ser amado, a humanidade se esforçou desde as mais remotas eras para
alcançar, fora desses acasos, a continuidade que a liberta. O problema surgiu
diante da morte, que precipita aparentemente o ser descontínuo na continuidade
do ser. Esta maneira de ver não se impõe desde o princípio ao espírito,
entretanto a morte, sendo a destruição de um ser descontínuo, não afecta em
nada a continuidade do ser, que existe, geralmente, fora de nós. Eu não esqueço
que, no desejo de imortalidade, o que entra em jogo é a preocupação de
assegurar a sobrevivência na descontinuidade, a sobrevivência do ser pessoal,
mas eu deixo a questão de lado. Insisto no facto de que, a continuidade do ser
estando na origem dos seres, não é atingida pela morte, é independente dela, e
mesmo até manifestada por ela. Este pensamento me parece ser a base da
interpretação do sacrifício religioso, que pode ser comparado, como eu disse há
pouco, à acção erótica. Esta, dissolvendo os seres que nela se engajam, lhes
revela a continuidade, lembrando o desenrolar das águas tumultuosas. No
sacrifício, não há somente desnudamento, há imolação da vítima (ou se o objecto
do sacrifício não for um ser vivo, há, de alguma maneira, destruição desse objecto).
A vítima morre, enquanto os assistentes participam de um elemento que revela a sua
morte. Este elemento é o que se pode chamar, com os historiadores das
religiões, de sagrado. O sagrado é justamente a continuidade do ser revelada
àqueles que fixam a sua atenção, num rito solene, na morte de um ser
descontínuo. Há, devido à morte violenta, ruptura da descontinuidade de um ser:
o que subsiste e que, no silêncio que cai, os espíritos ansiosos sentem é a continuidade
do ser, a que a vítima é devolvida. Só um sacrifício espectacular, operado em
condições que determinam o carácter sério e colectivo da religião, é susceptível
de revelar o que de hábito escapa à atenção. Não poderíamos, por outro lado,
imaginar o que aparece no mais secreto do ser dos assistentes se não pudéssemos
nos referir às experiências religiosas que fizemos pessoalmente, mesmo que
sejam as de nossa infância. Tudo nos leva a crer que, essencialmente, o sagrado
dos sacrifícios primitivos é o análogo ao divino das religiões actuais. Disse
há pouco que falarei do erotismo sagrado; eu me teria feito compreender melhor
se tivesse falado desde o começo de erotismo divino. O amor de Deus é uma ideia
mais familiar, menos desconcertante que o amor de um elemento sagrado. Não o
fiz, repito, porque o erotismo, cujo objecto se situa para além do real
imediato, está longe de ser redutível ao amor de Deus. Preferiria ser pouco
inteligível a ser inexacto. Essencialmente, o divino é idêntico ao sagrado,
restrição feita à descontinuidade relativa da pessoa de Deus. Deus é um ser
compósito, tendo no plano da afectividade, mesmo de uma maneira fundamental, a
continuidade do ser de que estou falando. A representação de Deus não está
menos ligada, tanto pela teologia bíblica quanto pela teologia racional, a um
ser pessoal, a um criador distinto da totalidade daquilo que é. Da continuidade
do ser, limito-me a dizer que ela não é, do meu ponto de vista, conhecível
mas a sua experiência nos é dada sempre, em parte, sob formas
aleatórias, contestáveis. A experiência negativa só serve, a meu ver, para
chamar a atenção, mas é uma experiência rica. Nunca devemos esquecer que a
teologia positiva se desdobra numa teologia negativa, fundada na
experiência mística.
Se
bem que sejam coisas bem diferentes, a experiência mística é dada, parece-me, a
partir da experiência universal que é o sacrifício religioso. Ela introduz, no
mundo que é dominado pelo pensamento ligado à experiência dos objetos (e ao
conhecimento do que desenvolve em nós a experiência dos objectos), um elemento
que não ocupa um lugar nas construções desse pensamento intelectual, a não ser
negativamente, como uma determinação de seus limites. Com efeito, o que a
experiência mística revela é uma ausência de objecto. O objecto se identifica
com a descontinuidade, e a experiência mística, na medida em que temos em nós a
força de operar uma ruptura de nossa descontinuidade, introduz em nós o
sentimento da continuidade. Ela o introduz por outros meios sem ser o do
erotismo dos corpos ou dos corações. Mais exactamente, ela se priva de meios
que não dependem da vontade. A experiência erótica ligada ao real é uma espera
do aleatório, é a espera de um ser dado e das circunstâncias favoráveis. O
erotismo sagrado, dado na experiência mística, quer somente que nada perturbe o
indivíduo». In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João
Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN
978-972 608-018-3.
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