segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O Mercador de Livros Malditos. Marcello Simoni. «De que coisa se trata? Não faço ideia e penso que é melhor assim. O velho tossiu uma vez mais, depois retomou a conversa com voz rouca»

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O Mosteiro dos Enganos
«(…) O abade acabara de entrar no refeitório e os monges retardatários apressavam-se a segui-lo. Uberto encontrava-se entre eles. Atravessava o pátio juntamente com o velho padre Tommaso Galeata, que segurava pelo braço. O velho andava com dificuldade, cambaleando a cada passo sobre as pernas magras e arqueadas. Esta será a minha última Primavera, filho. O Senhor está a chamar-me para junto Dele. Repetia esta frase há cerca de dez anos. O rapaz sorriu, ligeiramente distraído. Momentos antes observara um homem que viera por detrás do Castrum Abbatis, correra na direcção da hospedaria e subira uma escada exterior que ladeava o edifício. Ginesio, à espreita em frente da entrada principal, não dera por ele. O homem, entretanto, desaparecera. Devia ter entrado por uma janela do segundo andar. Aquele homem era Ignazio, o mercador de Toledo, comentou Uberto, pensando em voz alta. Viste o peregrino Ignazio?, perguntou o velho, concluindo a frase com um ataque de tosse. Pareceu-me. O monge pigarreou. É uma pessoa misteriosa, aquele Ignazio. Conheci-o quando aqui veio pela primeira vez. Parecia bem desesperado, nessa época. Uberto, cheio de curiosidade, virou-se gentilmente para Tommaso: dizei-me, avozinho, o que sabeis vós dele? Avozinho era a forma como Uberto o costumava tratar, uma vez que fora o velhote, mais do que todos os outros, a cuidar dele desde a infância.
O velho monge abrandou o passo e inspirou o ar tépido do meio-dia. Nessa época fugia da Germânia. Foi Maynulfo Silvacandida quem mo confidenciou, pedindo-me que não o revelasse a ninguém. És o primeiro a quem o digo. Trata-se de coisas delicadas, que me foram reveladas, embora apenas numa mínima parte. Uberto anuiu, grato pela confiança que o monge nele depositara. Tommaso contou então a história daqueles anos da vida de Ignazio que poucos conheciam. Tudo começou em mil duzentos e dois, quando o mercador de Toledo conheceu um certo Vivien Narbonne, um monge vagabundo de fama duvidosa. Os dois tiveram a ousadia de se meter em negócios com um alto prelado de Colónia, talvez o arcebispo em pessoa. Mostraram-lhe algumas relíquias preciosas, recuperadas sabe-se lá onde, algures por esse mundo. Uberto perguntou de que relíquias se tratava, mas o velho não soube responder-lhe.
Apertando com mais força o braço do jovem acompanhante, Tommaso prosseguiu a história: por razões que ignoro, o negócio não foi avante. Parece, além disso, que o seu comitente faria parte de um tribunal secreto sediado na Germânia, com sequazes espalhados por todo o mundo. Um tribunal secreto? De que coisa se trata? Não faço ideia e penso que é melhor assim. O velho tossiu uma vez mais, depois retomou a conversa com voz rouca: Ignazio viu-se obrigado a fugir, mas foi perseguido. Atravessou a França, transpôs os Alpes, passou por Veneza e encontrou refúgio exactamente neste mosteiro. Foi acolhido pelo abade Maynulfo e permaneceu aqui escondido por algum tempo. Depois partiu para o Oriente. E Vivien Narbonne, o que lhe aconteceu? Os dois companheiros separaram-se durante a fuga. Maynulfo não me revelou o que terá acontecido a Vivien, talvez nem ele próprio o soubesse, e penso que não terá voltado sequer a ter notícias de Ignazio. Uberto estava prestes a formular outra pergunta quando Tommaso se adiantou: é tarde. Vamos até ao refeitório, meu filho, senão ainda ficamos sem almoço.
Gualimberto Prataglia esperava em frente da entrada da biblioteca. Andava em semicírculos, com uma expressão pensativa e as mãos cruzadas sobre a barriga, quando Ignazio regressou. Aqui estou, padre. O mercador mostrou-lhe um saquinho de pele que continha as raízes. Dizeis que são eficazes?, perguntou Gualimberto. As ervas e as raízes têm propriedades curativas, como sabeis, imagino. Ignazio franzir o sobrolho. Mas agora dizei-me, e espero não ser indiscreto, por que motivo não vedes com bons olhos o abade Rainerio? A pergunta foi tão inesperada que o monge ficou roxo.
- Mas que ideia! Como pensastes.... Não mintais, por caridade. O tom do mercador tornou-se confidencial. Apercebi-me do desprezo com que o tratais. Tinha a certeza de que iria obter uma resposta sincera: sabia ter conseguido estabelecer uma cumplicidade secreta com aquele homem. Não penseis mal, peço-vos, murmurou Gualimberto. É que eu, como muitos outros frades, não consigo habituar-me aos seus modos altivos. Mordeu os lábios, embora incapaz de se conter: além disso, Rainerio não é digno de ocupar o lugar de Maynulfo. Usurpou-o servindo-se de um embuste». In Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.

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