sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

A Hora do Diabo Fernando Pessoa. «A música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas. Mas por música não deve entender-se só aquela que se toca, se não também aquela que fica eternamente por tocar»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Saíram da estação, e, ao chegar à rua, ela viu com pasmo que estava na própria rua onde morava, a poucos passos de casa. Estacou. Depois voltou-se para trás, para exprimir esse pasmo ao companheiro; mas atrás dela não vinha ninguém. Estava a rua, lunar e deserta, nem havia nela edifício que pudesse ser ou parecer ser uma estação de comboios. Tonta, sonolenta, mas interiormente desperta e alarmada, foi até casa. Entrou, subiu; no andar de cima encontrou, ainda desperto, o marido. Lia, no escritório, e, quando ela entrou, depôs o livro. Então?, perguntou ele. E ela: correu tudo muito bem. O baile foi muito interessante. E acrescentou, antes que ele perguntasse. Umas pessoas que estavam lá no baile trouxeram-me de automóvel até ao princípio da rua. Não quis que eles viessem até à porta. Saí ali mesmo; insisti. Ah, que cansada que estou! E, num gesto de grande cansaço e esquecendo-se de um beijo, foi-se deitar. Os seus sonhos adquiriram uma feição estranha, pontuados com coisas inexplicáveis por qualquer experiência que se conheça. Pairou nela o desejo de grandes coisas, como de alguém que um dia foi separado, numa vida antes desta, por sobre todas as idades da terra. E viu-se a deslocar por uma ponte de uma grande altura, de onde se vê todo o mundo. Em baixo, a uma distância mais que impossível, estavam, como astros espalhados, grandes manchas de luz: cidades, sem dúvida, da terra. Uma figura de vermelho apareceu-lhe e apontou-lhas, dizendo: são as grandes cidades do mundo. Aquela é Londres, e apontou uma na distância descida. Aquela é Berlim, e apontou para outra. E aquela, ali, é Paris. São manchas de luz na treva, e nós, nesta ponte, passamos alto sobre elas, incrédulos do mistério e do conhecimento. Que coisa tão pavorosa e tão bonita! Mas o que é aquilo tudo ali em baixo? Aquilo, minha senhora, é o mundo. Foi daqui que, por incumbência de Deus, tentei o seu Filho, Jesus. Mas não deu resultado, como eu já esperava, porque o Filho era mais iniciado que o Pai, e estava em contacto directo com os Superiores Incógnitos da Ordem. Foi uma provação, como se diz em linguagem iniciática, e o Candidato portou-se admiravelmente. Não percebo. Foi daqui, realmente, que tentou Cristo?
Foi. Está claro que, onde agora está um vale imenso, estava então uma montanha. No abismo também há geologias. Aqui, onde estamos agora, era o cume. Que bem que me lembro! O Filho do Homem repudiou-me desde além de Deus. Segui, porque era o meu dever, o conselho e a ordem de Deus: tentei-o com tudo quanto havia. Se tivesse seguido o meu próprio conselho, tê-lo-ia tentado com o que não pode haver. Talvez a história do mundo em geral, e a da religião cristã em particular, tivessem sido diferentes. Mas que podem contra a força do Destino, supremo arquitecto de todos os mundos, o Deus que criou este, e eu que, porque o nega, o sustenta? Mas como é que se pode sustentar uma coisa por a negar? É a lei da vida, minha senhora. O corpo vive porque se desintegra, sem se desintegrar demais. Se não se desintegrasse segundo a segundo, seria um mineral. A alma vive porque é perpetuamente tentada, ainda que resista. Tudo vive porque se opõe a qualquer coisa. Eu sou aquilo a que tudo se opõe. Mas, se eu não existisse, nada existiria, porque não havia a que opôr-se, como a pomba do meu discípulo Kant que, voando bem no ar leve, julga que poderia voar melhor no vácuo.
A música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas. Mas por música não deve entender-se só aquela que se toca, se não também aquela que fica eternamente por tocar. Por luar, ainda, não se deve supor que se fala só do que vem da lua e faz as árvores grandes perfis; há outro luar, que o mesmo sol não exclui, e obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos são sempre o que são. É o lado de nós em que nascemos e em que somos sempre naturais e nossos. Mas, se o mundo é acção, como é que o sonho faz parte do mundo? É que o sonho, minha senhora, é uma acção que se tornou ideia; e que por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a matéria, que é o estar no espaço. Não é verdade que somos livres no sonho? Sim, mas é triste o acordar... O bom sonhador não acorda. Eu nunca acordei. Deus mesmo duvida que não durma. Já uma vez ele mo disse... Ela olhou-o de sobressalto e teve subitamente medo, uma expressão do fundo de toda a alma que nunca sentira. Mas afinal quem é o senhor? Porque está assim mascarado? Respondo, numa só resposta, às suas duas perguntas: não estou mascarado. Como? Minha senhora, eu sou o Diabo. Sim, sou o Diabo. Mas não me tema nem se sobressalte. E num relance de terror extremo, onde boiava um prazer novo, ela reconheceu, de repente, que era verdade. Eu sou de facto o Diabo. Não se assuste, porém, porque eu sou realmente o Diabo, e por isso não faço mal. Certos imitadores meus, na terra e acima da terra, são perigosos, como todos os plagiários, porque não conhecem o segredo da minha maneira de ser. Shakespeare, que inspirei muitas vezes, fez-me justiça: disse que eu era um cavalheiro. Por isso esteja descansada. Na minha companhia está bem. Sou incapaz de uma palavra, de um gesto, que ofenda uma senhora. Quando assim não fosse da minha própria natureza, obrigava-me o Shakespeare a sê-lo. Mas, realmente, não era preciso». In Fernando Pessoa, A Hora do Diabo, Assírio & Assim, 1997, ISBN 978-972-370-435-8.

Cortesia de AeAlvim/JDACT