Cortesia
de wikipedia e jdact
«Saíram
da estação, e, ao chegar à rua, ela viu com pasmo que estava na própria rua
onde morava, a poucos passos de casa. Estacou. Depois voltou-se para trás, para
exprimir esse pasmo ao companheiro; mas atrás dela não vinha ninguém. Estava a
rua, lunar e deserta, nem havia nela edifício que pudesse ser ou parecer ser
uma estação de comboios. Tonta, sonolenta, mas interiormente desperta e
alarmada, foi até casa. Entrou, subiu; no andar de cima encontrou, ainda
desperto, o marido. Lia, no escritório, e, quando ela entrou, depôs o livro. Então?,
perguntou ele. E ela: correu tudo muito bem. O baile foi muito interessante. E
acrescentou, antes que ele perguntasse. Umas pessoas que estavam lá no baile
trouxeram-me de automóvel até ao princípio da rua. Não quis que eles viessem
até à porta. Saí ali mesmo; insisti. Ah, que cansada que estou! E, num gesto de
grande cansaço e esquecendo-se de um beijo, foi-se deitar. Os seus sonhos
adquiriram uma feição estranha, pontuados com coisas inexplicáveis por qualquer
experiência que se conheça. Pairou nela o desejo de grandes coisas, como de
alguém que um dia foi separado, numa vida antes desta, por sobre todas as
idades da terra. E viu-se a deslocar por uma ponte de uma grande altura, de
onde se vê todo o mundo. Em baixo, a uma distância mais que impossível,
estavam, como astros espalhados, grandes manchas de luz: cidades, sem dúvida,
da terra. Uma figura de vermelho apareceu-lhe e apontou-lhas, dizendo: são as
grandes cidades do mundo. Aquela é Londres, e apontou uma na distância descida.
Aquela é Berlim, e apontou para outra. E aquela, ali, é Paris. São manchas de
luz na treva, e nós, nesta ponte, passamos alto sobre elas, incrédulos do
mistério e do conhecimento. Que coisa tão pavorosa e tão bonita! Mas o que é
aquilo tudo ali em baixo? Aquilo, minha senhora, é o mundo. Foi daqui que, por
incumbência de Deus, tentei o seu Filho, Jesus. Mas não deu resultado, como eu
já esperava, porque o Filho era mais iniciado que o Pai, e estava em contacto
directo com os Superiores Incógnitos da Ordem. Foi uma provação, como se diz em
linguagem iniciática, e o Candidato portou-se admiravelmente. Não percebo. Foi
daqui, realmente, que tentou Cristo?
Foi.
Está claro que, onde agora está um vale imenso, estava então uma montanha. No
abismo também há geologias. Aqui, onde estamos agora, era o cume. Que bem que
me lembro! O Filho do Homem repudiou-me desde além de Deus. Segui, porque era o
meu dever, o conselho e a ordem de Deus: tentei-o com tudo quanto havia. Se
tivesse seguido o meu próprio conselho, tê-lo-ia tentado com o que não pode
haver. Talvez a história do mundo em geral, e a da religião cristã em
particular, tivessem sido diferentes. Mas que podem contra a força do Destino,
supremo arquitecto de todos os mundos, o Deus que criou este, e eu que, porque
o nega, o sustenta? Mas como é que se pode sustentar uma coisa por a negar? É a
lei da vida, minha senhora. O corpo vive porque se desintegra, sem se
desintegrar demais. Se não se desintegrasse segundo a segundo, seria um
mineral. A alma vive porque é perpetuamente tentada, ainda que resista. Tudo
vive porque se opõe a qualquer coisa. Eu sou aquilo a que tudo se opõe. Mas, se
eu não existisse, nada existiria, porque não havia a que opôr-se, como a pomba
do meu discípulo Kant que, voando bem no ar leve, julga que poderia voar melhor
no vácuo.
A
música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas. Mas por música não deve
entender-se só aquela que se toca, se não também aquela que fica eternamente
por tocar. Por luar, ainda, não se deve supor que se fala só do que vem da lua
e faz as árvores grandes perfis; há outro luar, que o mesmo sol não exclui, e
obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos são sempre o
que são. É o lado de nós em que nascemos e em que somos sempre naturais e
nossos. Mas, se o mundo é acção, como é que o sonho faz parte do mundo? É que o
sonho, minha senhora, é uma acção que se tornou ideia; e que por isso conserva
a força do mundo e lhe repudia a matéria, que é o estar no espaço. Não é
verdade que somos livres no sonho? Sim, mas é triste o acordar... O bom
sonhador não acorda. Eu nunca acordei. Deus mesmo duvida que não durma. Já uma
vez ele mo disse... Ela olhou-o de sobressalto e teve subitamente medo, uma expressão
do fundo de toda a alma que nunca sentira. Mas afinal quem é o senhor? Porque
está assim mascarado? Respondo, numa só resposta, às suas duas perguntas: não
estou mascarado. Como? Minha senhora, eu sou o Diabo. Sim, sou o Diabo. Mas não
me tema nem se sobressalte. E num relance de terror extremo, onde boiava um
prazer novo, ela reconheceu, de repente, que era verdade. Eu sou de facto o
Diabo. Não se assuste, porém, porque eu sou realmente o Diabo, e por isso não
faço mal. Certos imitadores meus, na terra e acima da terra, são perigosos, como
todos os plagiários, porque não conhecem o segredo da minha maneira de ser.
Shakespeare, que inspirei muitas vezes, fez-me justiça: disse que eu era um
cavalheiro. Por isso esteja descansada. Na minha companhia está bem. Sou
incapaz de uma palavra, de um gesto, que ofenda uma senhora. Quando assim não
fosse da minha própria natureza, obrigava-me o Shakespeare a sê-lo. Mas,
realmente, não era preciso». In Fernando Pessoa, A Hora do Diabo, Assírio
& Assim, 1997, ISBN 978-972-370-435-8.
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