domingo, 19 de fevereiro de 2017

O Cemitério de Praga. Umberto Eco. «Tratava-se de um conjugado, algo entre um escritório e um quarto, com móveis sóbrios e escuros, uma mesa de trabalho, um genuflexório, uma cama»

jdact e wikipedia

Quem sou? 24 de Março de 1897
«(…) Então, eu era alguém que se disfarçava uma vez de abastado cavalheiro e outra de eclesiástico? Mas por que havia cancelado qualquer lembrança dessa minha segunda natureza? Ou, então, por qual motivo (talvez para escapar de um mandado de captura) me disfarçava com bigode e barba mas, ao mesmo tempo, hospedava na minha casa alguém que se disfarçava de abade? E, se esse abade de mentira (porque um abade verdadeiro não usaria uma peruca) vivia comigo, onde dormia, visto que na casa havia somente uma cama? Ou quem sabe ele não vivia comigo, e se refugiara na minha casa na véspera por alguma razão, livrando-se depois do seu disfarce para ir sabe Deus aonde, a fim de fazer sabe Deus o quê? Senti um vazio na cabeça, como se visse algo de que deveria me lembrar mas de que não me lembrava; quero dizer, como algo que pertencesse às lembranças de outrem. Creio que falar de lembranças de outrem é a expressão certa. Naquele momento, tive a sensação de ser um outro que estava se observando, de fora. Alguém observava Simonini, que tinha repentinamente a sensação de não saber exactamente quem era. Calma, raciocinemos, disse a mim mesmo. Para um indivíduo que, sob o pretexto de vender bricabraque, falsifica documentos e escolheu viver em um dos bairros menos recomendáveis de Paris, não era inverossímil dar asilo a alguém envolvido em maquinações pouco limpas. Mas ter esquecido a quem dava refúgio, isso não me soava normal. Eu sentia a necessidade de olhar às minhas costas, e de repente minha própria casa parecia um lugar estranho, que talvez escondesse outros segredos. Comecei a explorá-la como se ela fosse a moradia de outra pessoa. Quando se sai da cozinha, à direita fica o quarto, à esquerda o salão com os móveis de sempre. Abri as gavetas da escrivaninha, que continham meus instrumentos de trabalho, as penas, os frasquinhos das várias tintas, folhas ainda brancas (ou amarelas) de épocas e formatos diferentes; nas prateleiras, além dos livros estavam as caixas com meus documentos e um tabernáculo antigo em nogueira. Passei a tentar recordar para que servia aquilo quando ouvi tocarem lá em baixo. Desci para escorraçar algum importuno e vi uma velha que acreditei conhecer. Através da vidraça, ela me disse fui enviada por Tissot, e fui obrigado a fazê-la entrar; sei lá por que escolhi aquela senha.
Ela entrou e abriu um pano que trazia apertado ao peito, mostrando-me vinte hóstias. O abade Dalla Piccola me disse que o senhor estava interessado. Surpreendi-me respondendo certo, e perguntei quanto. Dez francos cada uma, foi o que disse a velha. A senhora está maluca, respondi, por instinto de comerciante. Maluco é o senhor, que celebra missas negras com elas. Acha fácil ir a vinte igrejas em três dias, receber a comunhão depois de procurar manter a boca seca, ajoelhar-se com as mãos no rosto, tentar retirar as hóstias da boca sem que se umedeçam e recolhê-las numa bolsa que levo junto aos seios, de tal modo que nem o vigário nem os vizinhos percebam? Sem falar do sacrilégio e do inferno que me espera. Portanto, se quiser, são duzentos francos, ou então vou procurar o abade Boullan. O abade Boullan morreu. Vê-se que a senhora não consome hóstias faz tempo, respondi quase maquinalmente. Depois decidi que, com a confusão que sentia na cabeça, devia seguir meu instinto sem reflectir demais. Está bem, fico com elas, concluí e paguei.
E compreendi que devia guardar as partículas no tabernáculo do meu escritório, à espera de algum cliente aficcionado. Um trabalho como outro qualquer. Em suma, tudo me parecia quotidiano, familiar. No entanto, eu sentia ao meu redor como que o odor de algo sinistro, que me escapava. Tornei a subir ao escritório e notei que, coberta por um reposteiro, ao fundo havia uma porta. Abri-a já sabendo que entraria num corredor tão escuro que seria preciso percorrê-lo com uma lamparina. O corredor se assemelhava ao depósito de acessórios de um teatro ou ao armazém de um adeleiro do Templo. Nas paredes, estavam pendurados os trajes mais díspares, de camponês, de carbonário, de carteiro, de mendigo, um gibão e umas calças de soldado, e, ao lado das roupas, os adereços de cabeça que deveriam completá-las. Uma dúzia de cabeças dispostas em boa ordem sobre um console de madeira sustentavam outras tantas perucas. Ao fundo, uma coiffeuse semelhante à dos camarins de actores, coberta por potinhos de alvaiade e de ruge, lápis pretos e turqui, patas de lebre, esponjas, pincéis, escovinhas. Em certo ponto, o corredor dobrava em ângulo recto e, no final, havia outra porta que conduzia a um aposento mais luminoso do que os meus, porque recebia a luz de uma rua que não era o apertado impasse Maubert. De facto, debruçando-me numa das janelas, vi que ele dava para a rue Maître Albert. Desse aposento, uma escadinha levava à rua, mas isso era tudo.
Tratava-se de um conjugado, algo entre um escritório e um quarto, com móveis sóbrios e escuros, uma mesa de trabalho, um genuflexório, uma cama. Junto à saída abria-se uma pequena cozinha e, sob a escada, uma chiotte com pia. Era evidentemente o pied-à-terre de um eclesiástico, com quem eu devia ter alguma familiaridade, uma vez que nossos dois apartamentos se comunicavam. Embora o conjunto parecesse lembrar-me alguma coisa, na verdade eu tinha a impressão de estar visitando aquele aposento pela primeira vez. Aproximei-me da mesa e vi um feixe de cartas com seus envelopes, todos endereçados à mesma pessoa: ao reverendíssimo, ou ao muito reverendo, senhor abade Dalla Piccola. Junto às cartas, notei umas folhas escritas em uma caligrafia fina e graciosa, quase feminina, muito diferente da minha. Esboços de cartas sem nenhuma importância especial, agradecimentos por uma dádiva, confirmações de um encontro. O papel que estava sobre todos, porém, era redigido de maneira desordenada, como se quem escrevia estivesse tomando notas para fixar alguns pontos sobre os quais reflectir. Com alguma dificuldade, li: tudo parece irreal. Como se eu fosse um outro que me observa. Registar por escrito para ter certeza de que é verdade. Hoje é 22 de Março. Onde estão o hábito e a peruca? O que eu fiz ontem à noite? Tenho uma espécie de névoa na cabeça. Não recordava sequer aonde levava a porta ao fundo do aposento. Descobri um corredor (nunca o vi?) cheio de roupas, perucas, cremes e maquilhagens daquelas que os actores usam». In Umberto Eco, O Cemitério de Praga, 2010, tradução de Joana Angélica Melo, ePUBr, Biblioteca Digital Brasileira, Editora Record, Rio de Janeiro, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.

Cortesia de ERecord/JDACT