quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Metamorfoses da cidade medieval. A coexistência entre a comunidade judaica e a catedral de Viseu. Anísio Sousa Saraiva. «… comuna de Viseu para esta área da cidade e a consequente formação de uma nova judiaria terá sido um processo intencional, que mereceu o devido consentimento por parte da Coroa»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Se estes primeiros dados apontam para a presença judaica no arrabalde citadino, pelos inícios do reinado de Pedro I (1357-1367) essa tendência de fixação mostra-se ter invertido, em favor da centralidade imposta pela Praça, na confluência da qual se situava a Rua da Triparia, que ligava aquele largo à não menos central e animada Rua das Tendas (sobre o conceito de praça e o seu papel como elemento urbano de maior significado na cidade medieval, evolução toponímica e o traçado de algumas das artérias urbanas de Viseu, onde, pouco antes de 1359, se regista a morada de um judeu chamado Jacob. De facto, este dado leva-nos a suspeitar que, pelo começo da segunda metade de Trezentos, o bairro dos judeus já tivesse abandonado o arrabalde deslocando-se para este núcleo estratégico do centro urbano (em Coimbra, por exemplo, a tendência foi inversa à de Viseu, com a mutação da judiaria do centro para o arrabalde citadino, entre 1360-1380). Prova disso surge anos mais tarde, em 1379, ao registarmos a primeira referência documental à sinagoga de Viseu, localizada nas imediações da Praça e da Triparia, mais precisamente numa das quelhas que partiam da rua das Tendas, por certo não muito afastada da Rua da Judiaria, documentada também pela primeira vez, em 1386 (tal como em Viseu, as judiarias de Guimarães, Barcelos, Vila Real, Tomar, Lagos e Miranda do Douro formavam-se em torno de uma única rua). Estas duas importantes referências permitem-nos, assim, inferir que este novo pólo de reunião e da vida da comuna judaica já se encontrava perfeitamente definido e organizado nesta zona privilegiada da cidade, entre os últimos anos do reinado de Fernando I (1367-1383) e o princípio da governação de João I, 1385-1433). Em 1384 (6 de Setembro, Lisboa), o monarca João I doou ao seu escudeiro Álvaro Gonçalves Taborda os rendimentos que a Coroa auferia do serviço real pago pelos judeus de Viseu, o que mostra também a dimensão e a actividade da comuna judaica viseense por esse tempo. O que, aliás, vem ao encontro das determinações das cortes de Elvas realizadas por Pedro I em 1361, que impuseram às comunidades semitas, entre um vasto conjunto de obrigações segregacionistas, o dever de se organizarem em judiarias, constituindo assim uma identidade espacial própria, definida em torno do seu centro ordenador formado pela sinagoga. Se a isto ainda levarmos em conta que a construção deste templo, símbolo da vida espiritual e religiosa da comunidade, pressupunha a autorização do rei, fácil será concluir que a deslocação da comuna de Viseu para esta área da cidade e a consequente formação de uma nova judiaria terá sido um processo intencional, que mereceu o devido consentimento por parte da Coroa.
Deste modo ter-se-á concretizado mais um capítulo da história social e urbana de Viseu medieval que decorreu num período muito particular, profundamente marcado pela crise demográfica e cerealífera, agravado pelas sucessivas reincidências do trágico surto da Peste Negra, a que se juntaram, durante o reinado fernandino, três guerras com Castela, além da consequente crise dinástica portuguesa, dirimida durante a Crise de 1383-85, e do prolongamento das hostilidades com o reino vizinho até aos inícios do século XV. Foi sem dúvida um período de forte instabilidade e conflito, que se reflectiu na destruição e no despovoamento de Viseu, tragicamente atingida pelos saques e incêndios perpetrados pelas forças castelhanas em 1372, em 1385 e em 1396. O restabelecimento da paz, nos alvores de Quatrocentos, tornou possível que a cidade se lançasse à ambiciosa tarefa do seu repovoamento e da sua reconstrução, carenciada de gente e de investimento capaz de a reerguer e de restabelecer o seu dinamismo económico e social. E aqui tudo leva a crer terem os judeus desempenhado um papel decisivo, pois muitos terão sido aqueles que vieram habitar a urbe viseense, provavelmente vindos de outras aldeias e vilas beirãs ou da vizinha Castela, escapando assim ao movimento antijudaico que há décadas grassava neste reino. Disso mesmo nos dão conta os registos documentais quatrocentistas, que atestam um aumento exponencial do número de judeus em Viseu, bem como o empenho do cabido da Sé em reactivar a gestão da sua base patrimonial, através de uma firme política de emprazamentos de casas e pardieiros, dispersos um pouco por toda a cidade, procurando, em grande medida, reconstruir os seus imóveis e dinamizar a empobrecida economia capitular e urbana. O bairro judaico de Viseu fazia parte dessa rede imobiliária, razão por que encontramos, nestes primeiros anos do século XV, o cabido a emprazar a judeus umas casas na rua que dava acesso à sinagoga (o judeu David de Pam Corvo e a sua mulher Reyna emprazam ao cabido uma casa na rua que ia para a sinagoga; 1408 (19 de Junho, Viseu), ou a receber em doação um pardieiro na Judiaria, cuja localização as fontes passam a situar, com mais pormenor, nas imediações da rua das Tendas, a par da torre dos sinos da Sé (no espaço que hoje corresponde à Rua da Senhora da Boa Morte)». In Anísio Sousa Saraiva, Metamorfoses da cidade medieval. A coexistência entre a comunidade judaica e a catedral de Viseu, Revista Medievalista, nº 11, 2012, Universidade de Coimbra; Centro de História da Sociedade e da Cultura; Centro de Estudos de História Religiosa, IEM, ISSN 1646-740X.

Cortesia da RMedievalista/JDACT