quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Fernando Pessoa. Sónia Louro. «Continuo, pois gosto de pensar que sou eu quem escolho as ilhas onde aporto, mas lembro-me e relembro-me e vejo que o mar que nado não me pertence»

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Cai chuva do céu cinzento
«(…) A luz baça de dia em que choveu ou trovejou era a mesma dos meus sonhos acordados, mas o comandante não me podia parecer mais vago do que seria se sonhado, apesar do aspecto robusto, gordo até, do rosto quadrado e do bigode tão cheio quanto as suas carnes. Aquela imagem contrastava com o ar etéreo de quem pertence já a outro mundo, como o meu pai, mas era o comandante que me parecia onírico, pensei, desembarcando com o Chevalier de Pas, apertando a minha mão na dele. Tal como não me recordava do olhar do Taco para mim aquando da despedida naquele cais, também não me lembrava do do comandante, que passei a chamar papá. Apenas me recordava do da mamã e dolorosamente me lembrava de que ela estava feliz. Para ser completamente franco, havia um certo prazer neste sofrimento, pois eu não podia ser alheio à felicidade da mamã. Ela estava cansada de estar só e agora já não continuaria só. O que me causava dor, o que me esfrangalhava os nervos, era a minha companhia não ser suficiente para ela não sentir esse cansaço de estar só. E eu fiquei ainda mais cansado.
Como já disse, não me lembrava dos olhares do Taco ou do comandante, mas também havia coisas que não me recordava ter escrito. Por exemplo, encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho; desconheço-me neles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora despertado como de um sono alheio. Era isso. Era como se me desconhecesse até nas minhas lembranças.
Houve também quem sentisse as emoções da minha infância perdida em África, muitas vezes pensava que não fui eu. Tenho a impressão que toda a minha infância está em Lisboa, mas mesmo essa já não sei quem a sentiu. Ainda hoje não sei quem sente o que eu estou sentindo. Mesmo as minhas recordações me parecem ser de outras pessoas. Talvez por isso existissem coisas que recordo e tantas que me fugiam nas malhas da memória, mesmo quando estava a comer um bombom de chocolate ou a beber um copo de absinto, há muito que não bebia absinto, fazia-me mal ao fígado. Havia os acontecimentos de África: não sabia se os tinha esquecido ou se apenas os atirara para o fundo de um poço sem fundo. A frase parece absurda, mas apenas significava que essas lembranças continuavam em queda dentro de mim, talvez ainda me fosse possível apanhar algumas. Sabia que nada disto tinha qualquer sentido, por isso mesmo continuava.
Seria de esperar que o tempo provocasse o esquecimento progressivo, mas já percebi que esse esquecimento é selectivo, embora não sinta qualquer intervenção nessa escolha. Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Tudo. Mas há acontecimentos, locais, nomes de ruas que aparecem na minha memória como que a flutuar na massa escorregadia das outras recordações que se perdem e que não sei ao certo se são minhas, do Ricardo Reis, do Álvaro de Campos ou do Alberto Caeiro, ou se são aquelas que, desde que se criaram, continuam em queda para o fundo do tal poço que não tem fundo. Esqueço-me indefinidamente, esqueço mais do que podia lembrar.

Há dias, melhor, há noites, em que as memórias me
afogam no mar que é a minha cama e sinto-me um
náufrago agarrado como última esperança ao meu
cobertor como a um toco. O Chevalier de Pas não
vem em meu auxílio porque já não sou criança,
embora me sinta maís indefeso do que então. Mas
nessa altura era feliz porque não tinha consciência
de nada, da minha fragilidade, da minha solidão
e do amor que era meu e me levaram. Sou mais
indefeso agora porque sei que o sou, era feliz então
porque não sabia que o era.
Náufrago das minhas próprias memórias, nado por
Elas como se dormisse, mas estou acordado e contorno-
as como a ilhas onde habitassem piratas cruéis
ou feras terríveis de várias cabeças com o dom de
dormirem e despertarem à vez. Continuo, pois gosto
de pensar que sou eu quem escolho as ilhas onde
aporto, mas lembro-me e relembro-me e vejo que o
mar que nado não me pertence, as memórias não
são minhas e tudo não passa de uma insónia sem
fim. Afinal não escolho nada e desperto como se
tivesse dormido».

In Sónia Louro, Fernando Pessoa, Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-674-1.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT