quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «Difícil de criar, Luís Vaz. Vagueando pela Mouraria, falando sozinho, dizendo coisas nunca ouvidas, perdendo-se por becos e travesses».

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As Mulheres de Camões. Violante de Andrade. 1543
«(…) Em Coimbra não havia forma de tomar juízo e o mais das vezes não atendia às palestras dos mestres. Ele mesmo mo confessou: era mais forte o apelo das margens do Mondego, a sombra dos chorões espelhada no rio, os prados, as sebes em flor os lavadoiros onde cantarolava a frescura sadia das moças simples e louçãs do que as paredes húmidas das salas de aula encarrapitadas no topo íngreme da colina, de costas para tudo. Certo dia, aquando de uma das estadas do tio Bento, meu cunhado, em Lishoa, dispus-me a indagar como iam os estudos de Luís Vaz. Custou-me a entender, mas lá fiquei a saber que os estudos menores no Mosteiro de Santa Cruz se dividiam em dez classes e que, das portas para dentro, os moços eram obrigados a comunicar apenas em latim e grego, mesmo entre eles e nas horas de recreio. Na décima classe os rapazinhos de sete anos aprendiam a ler, escrever e declinar o latim. As moças ficavam de parte, outras tarefas caseiras as entretinham. Na nona classe começavam então a ler em duas línguas: latim e português. Na oitava já liam Cícero e nas classes seguintes aprofundavam-no e acrescentavam-lhe Terêncio e Ovídio, para que na terceira classe começassem com a retórica. Disse-me dom Bento que na segunda e na primeira classe já não se ia em batotas: tinham de saber Cícero e Virgílio com segurança, sendo-lhes exigidos ensaios de composição, declamação e versificação e muitos exercícios de improviso; mas só na primeira classe podiam falar com historiadores, poetas e oradores e, aí sim, em português. O abade Bento contou-me o entusiasmo com que Luís Vaz se pusera a folhear a gramática portuguesa de Fernão Oliveira e a segunda gramática impressa, também em língua portuguesa, uma cartilha com figuras, da autoria de João Barros; e de como, pouco tempo passado, se deitara a escrever versos e versos, acabando por lhos dedicar todos.
Insisti para que me dissesse em que classe ia Luís Vaz, mas por resposta só obtive um encolher de ombros: vai indo! Já traduz Petrarca, já sabe de cor Orlando Furioso, de Ariosto, e lê tudo o que pode de Boscán, Garcilasso e Sannazaro. Vale-se da memória, que nele é mais sólida e mais duradoura do que a pedra. A leitura que tem, a mim a deve! Franqueei-lhe a entrada na livraria de Santa Cruz e também na da universidade, tantas vezes que já lhes perdi a conta. Para mim todos aqueles nomes eram um absoluto mistério. Fui acenando com a cabeça e achei melhor nada mais indagar. O meu cunhado já carregava o peso da idade. Talvez lhe custasse a entender a juventude ardente do sobrinho. Fiz bem em ter ido à Sé encontrar-me com o abade Bento. Deslizei até à sacristia, aproveitando o final do ofício e, afastando o véu que me cobria o rosto, anunciei-me a meu cunhado. Abraçou-me com força, ternura e saudade, mas nada me revelou que eu não suspeitasse já. Disse-me e insistiu que era conveniente que Luís Vaz ganhasse tino, agora que passara a Xabregas, pois que em Coimbra nada nem ninguém o amarraria mais aos bancos da universidade. O rapaz nasceu com um dom raro, comadre. Tudo lhe interessa, por tudo arde de curiosidade, tudo o distrai, tudo o chama, tudo menos as lições. E é bom que se recorde que foi a minhas expensas e por minha intercessão que por lá passou... Espero que não desonre o meu nome. Luís Vaz deixa-se ir, certas amizades…, bom, é melhor que nem te o conte pela metade!
As lágrimas corriam-me pelo rosto e apressei-me a limpá-las com as costas da mão. Na ausência do pai, era sobre os meus ombros que recaíam todos os trabalhos. A culpa do seu temperamento ocioso e imponderado havia de ser tão-só, minha, que o criara como se fora meu. Quando o terramoto fez tremer Lisboa e a peste correu atrás do que restava dos vivos, era Luís Vaz menino de primeiras palavras. O pai, o meu Simão, pensou em fugir para Coimbra, para junto de frei Bento, seu irmão, que sempre nos amparou como me ampara agora e que por certo nos daria abrigo; mas quis Deus que a peste nos passasse à porta e seguisse viagem, ceifando outras vidas noutras moradas. Voltou Deus a querer que escapássemos quando, seis anos volvidos, novo tremor sacudiu a cidade de Lisboa com fúria tal que vimos a morte, de negro capuz e gadanha, a vir por nós. Lembro-me de puxar o menino pare o regaço, fazendo-o ajoelhar na soleira da porta para que se encomendasse ao Altíssimo.
Difícil de criar, Luís Vaz. Vagueando pela Mouraria, falando sozinho, dizendo coisas nunca ouvidas, perdendo-se por becos e travesses. Não queria que lhe ensinassem as primeiras letras, que as já sabia só de as escutar. Diziam que saía ao primo Simão Vaz Júnior, um estoura-vergas escalador de conventos, que só a protecção do malogrado príncipe João Manuel ia livrando das malhas da justiça. Luís Vaz teimava que não havia de estudar para padre: por onde andas, Luís Vaz? Aos pardais, senhora mãe. Volta, Luís Vaz. Um dia, senhora. Não há-de tardar». In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.

Cortesia de OdoLivro/JDACT