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Cai
chuva do céu cinzento
«(…)…
São as cabeças, os corpos, eles todos por inteiro,
são
o Caeiro, o Reis e o Campos. Podem ser sem
vida
os olhos dos dois primeiros, pois são sempre
sem
vida os olhos de um morto e os de um exilado
da
pátria, mas os do Campo são vivos, porque
são
vivos os olhos de um vencedor e ele vence-me.
Sempre
me vence».
Em Janeiro
do ano seguinte, em 1896, partimos para Durban: a mamã, eu e o Chevalier de
Pas. o tio Gualdino também foi, mas se não fosse o Chevalier de Pas,
os trinta dias de viagem ter-me-iam parecido trezentos. Deixava um lugar para
chegar a outro e nessa linha que unia Lisboa a Durban sentia em mim a vertigem
do novo, a náusea do desconhecido e quem sabe do mar. Em verdade, era a náusea
causada pela opressão do mar e do céu, que se uniam até ao infinito, e a do
abandono do lar onde eu era a pessoa em torno da qual as outras se moviam.
Percorri a bordo do Harwaden Castle, nome muito apropriado para a
companhia do Chevalier de Pas, essa linha móvel que separava o mundo
conhecido do desconhecido ao mesmo tempo que sentia a minha infância a passar.
Restava-me o consolo de pensar: quantas crianças terão visto a sua infância
passar a bordo de um castelo e na companhia de um cavaleiro? Apenas eu. Era
apenas eu... Tremia então só de pensar na viagem, tremo ainda hoje ao
recordá-la. O arrepio do medo daqueles trinta dias ainda me assombravam, por
vezes, as noites de insónia.
Qual
cavaleiro, o tio Gualdino acompanhou-nos até Durban para proteger a reputação
da minha mãe. O meu cavaleiro acompanhou-me também toda a viagem para proteger
o resto da minha infância que partia em alto-mar, deitada pela chaminé com o
fumo do vapor. A minha mãe estava demasiado enlevada nos seus devaneios de
novamente recém-casada e na expectativa de reencontrar o seu marido por
procuração. Recordava o olhar da minha mãe nessa altura, era como se estivesse sempre
distante, os olhos dela chegaram a Durban antes de o Harwaden Castle.
Não conseguia recordar os do tio Gualdino, Taco para mim, no momento da
despedida, em Durban. Recordava, contudo, a cor das flores, o comprimento das
sombras mortas sobre o alinhamento de calçadas, casas e bancos de jardim pelas
ruas que iam dar ao circo onde todos os domingos o Taco me levava porque eu lhe
pedia. Ele e a minha tia Maria Xavier não tinham filhos e já tinham passado da
idade em que ainda existe essa possibilidade. Afeiçoaram-se, por isso, à ideia
de me terem assim que souberam que a mamã se casaria. Isso não me magoava, mas
entristecia-me saber que a mamã ponderou começar sozinha uma vida nova, como se
eu fosse um empecilho para a sua felicidade. Eu que deveria ser toda a razão da
mesma.
Durante
a viagem, a mamã apertou muitas vezes o seu rosto contra o meu, quando o meu
maior desejo era que me apertasse contra o seu coração. Deveria ter percebido
então que ela não me amava. Se eu não poderia viver senão acarinhado, por que
deitaram fora o meu carinho? Contudo, na minha desolação de criança triste,
que nem isso sabia ser então, havia a consolação de me ser permitido estar a
seu lado. De facto, podia dizer que ganhei essa permissão. Com o Taco e a tia Maria
Xavier a quererem-me para si, com a tia Anica a desejar o mesmo, como poderia
não ser esse também o desejo da mamã? Porque não me queria ela para si? No
momento em que ela me consultou, soube que era uma batalha de vida ou de morte e,
instilado de coragem pelo Chevalier de Pas, escrevi:
«À
minha querida mamã:
eis-me
aqui em Portugal,
nas
terras onde eu nasci,
por
muito que goste dela,
ainda
gosto mais de ti».
Pedi-lhe
perdão depois por tê-la tuteado no poema, mas nunca pedi perdão à criança por
tê-la enganado e tê-la feito entrar numa batalha que julgava ser de vida ou de
morte, quando na realidade era de morte ou de morte. A criança que eu era
morreria sempre naquele campo de batalha. A mamã beijou-me na testa e, mais uma
vez, encostou o seu rosto ao meu. Eu acabava de conquistar o direito de estar
com ela e esse era o maior prémio que a minha poesia algum dia me daria. Durante
toda a viagem, sonhei com o comandante, o marido da minha mãe, aquele que me
preferia longe, em suma, o meu novo papá. Ele não ocupava os sonhos que eu
tinha dormindo, mas os que eu sonhava acordado. Pelo meio de paisagens
perplexas que eu julgava serem as africanas, entre personagens dramáticas, rios
cujo nome ignorava, e continuei ignorando, e luzes baças de dia em que choveu
ou trovejou, eu sonhava o comandante. Já o tinha visto, mas não me lembrava
dele. O Harwaden Castle tinha um calado muito fundo para poder entrar no porto
de Durban, fazendo com que as praias e o cais longínquos se mantivessem inalcançáveis
por mais tempo. O Chevalier de Pas conseguiu ocupar o ultimo lugar disponível
na chalupa que nos levaria para terra. Olhei para a margem na minha frente, não
reconheci na floresta brilhante o casario branco de Lisboa e as pequenas hortas
para o lado da Amadora. Apesar do sol mais quente, do recorte das praias na
costa, da cor e do som de várias aves que eu já conseguia ouvir o meu olhar
estava mais saudoso do que curioso naquele momento em que a chalupa calcorreava
a pequena ondulação até ao cais. Quando desembarquei, percebi que era melhor, e
até mais real, sonhar com o comandante à espera no cais, do que desembarcar
nesse mesmo cais junto ao comandante». In Sónia Louro, Fernando Pessoa, Saída de
Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-674-1.
Cortesia de
SdeEmergência/JDACT