terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

A Oficina dos Livros Proibidos. Eduardo Roca. «O quê? Não dizes nada? O olhar turvo tornou-se sério. Acaso não estás contente com o nosso novo “Burgermeister?”»

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A cidade. Colónia. 1435
«(…) Por isso, reservara para ele o final do discurso. O novo burgomestre rogou-lhe que conduzisse todos os presentes numa prece. Cedeu-lhe a posição frente à assistência e Heller colocou-se junto à esposa. Sem olhar para ela, tomou-lhe a mão e adoptou uma atitude piedosa. Agripina baixou a cabeça e ouviu com fervor as palavras do arcebispo. Um solene ámen, encheu toda a praça. Nesse instante, os músicos fizeram soar os seus instrumentos e o silêncio desapareceu numa onda, tal como chegara. O público dirigiu-se aos diferentes locais que o alcaide havia disposto para que os seus concidadãos pudessem deleitar-se bebendo. De imediato foi lançada para trás das costas a piedade das palavras: o júbilo, as risadas e os bailes tornaram-se donos do centro da cidade.
Dentro do edifício, Heller dirigiu-se à sala para onde ele próprio havia convocado as autoridades a fim de celebrar a ascensão ao poder e onde já os aguardava o banquete pronto para o selecto grupo de comensais. Todos se apressaram a felicitar Heller pela nomeação e pelo discurso. Diferentemente do que acontecia na rua, ali corria o vinho mais delicioso. Um homem alto, de uns cinquenta anos, com uma larga boina magenta a combinar com a elegante túnica de tecido pesado e de requinte, esperava o momento para iniciar os elogios. Os meus mais sinceros parabéns, Burgermeister. Acompanhou as palavras com uma breve inclinação do corpo. Obrigado, meu bom Nikolas, respondeu, colocando especial ênfase no bom. Ides deleitar-nos com a vossa presença no banquete que a corporação preparou? Com certeza. Vós sabeis que a ocasião o merece, Herr…
Heller interrompeu-o, levantando a mão. Não há formalismos entre nós... Espero que desfruteis dos manjares que o consistório entendeu por bem preparar para celebrar este humilde acto. Não fiqueis afastado de mim, Nikolas. Noutro momento falaremos das vossas…, habilidades. Não duvideis. Estou à vossa inteira disposição, disse Nikolas Fischer enquanto franqueava a passagem ao burgomestre e à esposa com uma reverência. Agripina contemplava inebriada a conversa. A presença de tantas personalidades desorientava-a, pois na sua vida quotidiana via-se sempre rodeada das mesmas serviçais, de modos artificiais e melosos. O seu rosto ruborizou-se quando o homem da bela túnica magenta também a observou: surpreendida nos seus pensamentos, o olhar inteligente daquela figura parecia conhecê-los. Por um momento sentiu-se aturdida.
Um a um, foram desfilando todos os convidados. De cada qual, Heller procurou armazenar na memória o tom com que se referiam a ele, desejoso de distinguir os que estavam realmente contentes com a sua nomeação. Descobrir onde poderia ocultar-se o inimigo iria ser, a partir daquele instante, uma das suas tarefas quotidianas. O último a entrar foi o arcebispo. Heller tomou-lhe a mão entre as suas e, ajoelhando-se, beijou-lhe o anel. Bem, bem... Descontraí-vos, burgomestre. Heller apertou os dentes para simular um trejeito de orgulho. Hoje é o vosso dia. Reconheço que me surpreendeu o vosso belo discurso… Calou-se por um segundo, com a atenção fixada no bulício proveniente do exterior. Não há dúvida de que soubestes ganhar o coração dos cidadãos. Os olhos do arcebispo divergiam das suas amáveis palavras. Coroados por espessas sobrancelhas que caíam apontando ao cenho como flechas, mostravam-se duros, impenetráveis. Heller recordou-se do que se dizia: mais do que um havia tremido perante aquele olhar furibundo. Não foi mais do que um acto de agradecimento à cidade que tanto me tem dado, excelência reverendíssima. Estou convencido de que o Senhor se coloca ao lado daqueles que sabem ser agradecidos, assentiu o arcebispo com um leve sorriso. Heller sentiu um leve calafrio na nuca. Inclinou-se de novo enquanto o arcebispo deu a bênção, para se voltar lesto para a mesa do banquete. As suas mandíbulas estavam apertadas. A seu lado, Agripina suspirou. Que se passa contigo?, perguntou o marido, contrariado. Nada. É que o arcebispo foi tão amável ao saudar-nos... Não é verdade, esposo meu?
Uma figura esbelta, conquanto larga de ombros, atravessava a praça do município. Ia envolta numa túnica azul e num grande capuz da mesma cor que lhe ensombrava o rosto. Na praça, a celebração encontrava-se num momento culminante. Um homem bochechudo e rosado munido de uma enorme caneca de barro transbordante de cerveja interpôs-se no seu caminho. Pareceis um monge. Escapastes do mosteiro para virdes aqui, irmão? Soltou uma gargalhada que tresandava a álcool. O desconhecido não lhe respondeu. O homem, contrariado, afastou o capuz com um puxão. Céus, se não é um galhardo jovem! Acaso serves de escudeiro a algum cavaleiro? O outro continuava sem lhe responder. Só o cabelo ondulado e loiro se agitava quase imperceptivelmente. Os olhos, estranhamente escuros, estavam fixos no rosto do interlocutor.
O quê? Não dizes nada? O olhar turvo tornou-se sério. Acaso não estás contente com o nosso novo Burgermeister? És um desses desbocados que dizem que o grande Heller Overstolz é um assassino? Ah! Desgraçados! O seu rival morreu quando foi assaltado por meliantes, precisamente uma das muitas coisas que Heller resolverá! Decerto! Perante o silêncio, o homem franziu os lábios, visivelmente incomodado. Toma, bebe. Colocou-lhe a caneca frente ao rosto, firme. Vamos. Bebe! O jovem, após meditar um momento, segurou com uma só mão a caneca, sem a levar à boca. Por que esperas? Não estamos a celebrar?, insistiu o barrigudo, arrastando as palavras. Aproximou então a caneca dos lábios, levantou-a com rapidez e bebeu todo o seu conteúdo. Virou-a de boca para baixo para demonstrar ao bêbedo que já tinha terminado». In Eduardo Roca, A Oficina dos Livros Proibidos, O Conhecimento pode Mudar o Mundo, 2011, tradução de Óscar Mascarenhas, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-754-015-8.

Cortesia de MarcadorE/JDACT