quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo Carvalho. «Dizem que a condessa é dama de mau génio e de uma tal soberba que, perto dela, a rainha dona Catarina é mais mansa do que um jumento»

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As Mulheres de Camões. Violante de Andrade. 1543
«(…) A missiva foi entregue. Onde?, perguntei, sem sequer erguer os olhos. A rapariga hesitou, entrelaçando os dedos trémulos. Onde?, repeti. Num..., num..., recanto da Mouraria, numa casa de..., humilde condição, gaguejou. O rapaz estava com uma moça. O que dizes? Uma moça..., mesmo assim cumpriram-se as ordens de Vossa Senhoria, senhora condessa. Não contava com tamanha afronta. Como era ela? Diz-me! A minha criada empalideceu e baixou os olhos, em sinal de respeito. Não fui eu quem a viu, senhora, foi o moço dos cavalos. Chama-o de imediato!

Ana de Sá. Mouraria, 2 de Setembro de 1543
O meu filho lá veio então para a capital, para casa dos condes de Linhares. Tudo me parecia melhor do que deixá-lo em Coimbra. onde às custas do tio Bento fingia assistir às lições. Contam-se muitas histórias sobre Luís Vaz: que se fez um moço aventureiro, alegre e de conversação fácil, que mais depressa despedaça corações do que escuta os mestres, que compôs um auto muito belo a que chamou Auto dos Enfatriões, parece que inspirado no que o mestre Gil Vicente havia feito para a Corte. Dizem que o auto revela um profundo conhecimento dos gregos. Mas como, senhores, como? Tenho esperança de que agora, como preceptor de um fidalgo de primeira linhagem, ganhe recato. Tantos anos de ausência..., que falta me tem feito. Nunca me pus a caminho de Coimbra; só voltei a vê-lo quando chegou a Lisboa e, tendo-se mudado para o palácio dos condes, em Xabregas, me veio visitar... Corre que deixou num desconsolo a prima Isabel, a quem sempre foi muito chegado, e uma rapariga de nome Leonor… Não sei. Sei tão-só que ao chegar de Coimbra me abraçou com tamanhas ganas que quase me quebrou os ossos, mas logo zarpou para o Mal-Cozinhado, sem sequer cuidar de arrumar o caderno onde deixara escritas as rimas.

Descalça vai pera a fonte
Leonor pela verdura;
Vai fermosa e não segura.
Descobre a touca a garganta,
cabelos de ouro o trançado,
fita de cor de encarnado...
Tão linda que o mundo espanta!
Chove nela graça tanta
que dá graça à fermosura,
vai fermosa, e não segura.

Mal pára em casa. Dorme o dia inteiro e sei eu lá por onde se desencaminha durante a noite, porventura entregue aos mais sombrios prazeres mundanos ou, melhor dizendo, carnais. que Deus me perdoe e o perdoe. Quando se põe além naquela mesa a escrever as suas rimas, parece ausente de tudo... Dizem-me que tem queda para poeta, pois a mim me parece que o mancebo tem queda é para as mulheres. Triste sorte a minha. Luís Vaz importa-me mais do que tudo; eu importo-lhe menos do que nada: mulheres, paixões, zaragatas, vinho, versos, em tudo põe maior enlevo. Foi Deus que quis pôr os senhores condes de Linhares no seu caminho..., pelo menos assim tem sustento. Dizem que a condessa é dama de mau génio e de uma tal soberba que, perto dela, a rainha dona Catarina é mais mansa do que um jumento. Mas que melhor futuro poderia eu desejar para Luís Vaz do que a entrada na Corte pela porta grande?» In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.

Cortesia de OdoLivro/JDACT