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Alexandria.
Egipto. 1799
«(…)
A luz mudou. Jac sabia que eram as nuvens a deslocar-se, mas a impressão que
criara era a de que o anjo respirava. Seria tão bonito acreditar que um anjo de
pedra podia ganhar vida. Que havia heróis que nunca desiludiam. Que a mãe
falava de facto com ela da tumba. Ah, mas falo mesmo, veio a resposta
sussurrada ao pensamento mudo de Jac. Sabes que sim. Sei o quanto achas
perigoso acreditar em mim, mas fala comigo, querida. Faz-te bem. Jac pôs-se de
pé e começou a desembrulhar as flores que levara. Nunca falava com o espectro.
A mãe não estava ali. Aquela manifestação era provocada por uma anomalia no seu
cérebro. Vira a ressonância magnética na secretária do pai e lera a carta do
médico. Jac tinha na altura catorze anos, mas mesmo agora precisaria de ver o
significado de algumas palavras no dicionário. O exame revelara o que os
médicos apelidavam de uma ligeira redução de volume na substância branca no
lobo frontal, à zona onde por vezes se encontravam vestígios de doença
psicótica. E isso provava que não era a sua imaginação hiperactiva que a fazia
sentir que estava a ficar louca, mas um distúrbio que os médicos podiam
observar.
Contudo,
não era algo que pudessem tratar. O prognóstico a longo prazo era incerto. A
doença podia nunca vir a tornar-se mais pronunciada. Ou então podia desenvolver
tendências bipolares. O médico recomendou terapia imediata em conjunto com um
ciclo de psicofármacos para aliviar os sintomas. Jac arrancou o invólucro de
celofane e amachucou-o, fazendo-o crepitar ruidosamente, mas não o suficiente
para abafar a voz da mãe. Sei que isto é perturbador para ti, querida, e
lamento muito. Assim que compôs os ramos na urna, sob a janela de vitral na
parede virada a oeste, estes começaram a perfumar o ar. Jac habitualmente
preferia aromas mais secos e lenhosos. Especiarias fortes e almíscar. Musgo e
pimenta com um leve vestígio de rosa. Porém, aquela flor de perfume doce era a
preferida da mãe, por isso trazia-a ano após ano e permitia que ela a
recordasse de tudo aquilo de que sentia falta.
O
céu escureceu e um súbito aguaceiro martelou o vidro. Agachando-se frente à
urna, Jac sentou-se sobre os calcanhares e escutou as gotas apedrejarem com força
o telhado e as janelas. Habitualmente, ficava ansiosa por passar à tarefa
seguinte. Por mudar de cenário. Nunca tinha vontade de se deter. Faria qualquer
coisa para evitar o tédio que convidava a um excesso de contemplação do género
que não apreciava. Porém, ali, naquele jazigo, uma vez por ano, Jac sentia uma
espécie de alívio doentio em ceder ao medo, ao pesar e à desilusão. Ali,
naquele abismo, sob a triste luz azulada, podia ficar quieta e importar-se em
demasia, ao invés de nem um pouco. Podia permitir-se abandonar-se às visões. Ser
assustada por elas, mas não as combater. Apenas uma vez por ano. Apenas ali dentro.
Quando
era miúda, costumava acreditar que esta luz era uma ponte que permitia
atravessar do mundo dos vivos para o dos mortos. Jac quase conseguia sentir a
mãe afagar-lhe o cabelo enquanto lhe falava naquele suave sussurro que costumava
usar quando a ia deitar. Fechou os olhos. O som da tempestade preencheu o
silêncio até Audrey voltar a falar. É o que ela é para nós, não é, querida? Uma
ponte? Jac não falou. Não podia. Ficou à espera das palavras seguintes da mãe,
mas, em vez disso, ouviu a chuva e depois o ranger das dobradiças, ao mesmo
tempo que a pesada porta de ferro forjado e vidro se abria. Virando-se, foi
atingida por uma rabanada de vento frio que entrava. Jac viu a silhueta de um
homem e, por um momento, não percebeu se era real ou não.
Nanjing,
China. 10 de Maio. 21h 05
O jovem
monge baixou a cabeça por um instante, como que em oração, e acendeu um
fósforo. A sua quietude e a calma que deixava transparecer eram quase beatíficas,
um momento de profunda paz interior. A sua expressão mal se alterou, mesmo
quando aproximou o fósforo aceso das roupas cerimoniais, ensopadas em
querosene. Chamas, da mesma cor da sua túnica cor de açafrão, engoliram-no. Xie
Ping desviou a sua atenção do website e olhou para os olhos de Cali
Fong, sem surpresa por vê-los marejados de lágrimas. É um escândalo, murmurou
ela com o lábio inferior a tremer». In M. J. Rose, O Livro dos Perfumes
Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-039-3.
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