quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

O Livro dos Perfumes Perdidos. MJ Rose. «És descendente de uma família de sonhadores, mas há uma diferença entre a realidade e o faz-de-conta. Compreendes?»

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Alexandria. Egipto. 1799
«(…) Não é real, recordou Jac a si própria enquanto avançava para o interior, fechando a porta atrás dela. O fantasma da mãe era uma aberração. Um produto da sua imaginação. Um resíduo da sua doença. A derradeira relíquia daqueles terríveis tempos em que o rosto que Jac via ao espelho não era o seu, mas o de alguém irreconhecível a olhá-la. Tempos em que tivera tanta certeza de que os desenhos a lápis que fazia não eram paisagens imaginárias, mas locais onde vivera, que fora à procura deles. Em que conseguia escutar os gritos das pessoas que via serem enterradas vivas..., queimadas vivas..., muito embora mais ninguém conseguisse. Jac tinha catorze anos quando a falecida mãe falou com ela. Escutou-a com frequência nas horas que se seguiram à sua morte, depois todos os dias, e por fim mais espaçadamente. Porém, depois de Jac ter abandonado a França e se ter mudado para a América, só escutava a voz dela uma vez por ano. Ali no sepulcro, em cada aniversário da morte da mãe. Uma mãe que, basicamente, abandonara a filha demasiado cedo e com dramatismo. Audrey morrera na oficina de perfumes, rodeada pelas mais deslumbrantes fragrâncias do mundo. Para Jac, que a encontrou, aquela permaneceria uma arrepiante e chocante memória olfativa. Os aromas a rosas e lírios, a lavanda, almíscar e patchuli, a baunilha, violeta e verbena, a sândalo e salva, e a imagem daqueles olhos abertos e sem vida, a olharem fixamente para o vazio. A imagem de um rosto sempre animado, tornado rígido. De uma mão estendida no colo, como se, no último momento, Audrey se tivesse lembrado de que estava a esquecer algo importante e tivesse esticado o braço para o agarrar. Segurando ainda as flores de macieira que trouxera, Jac atravessou o jazigo e pousou-as numa mesa de mármore ao lado da urna. Tinha uma tarefa para cumprir ali. Ao erguer os ramos secos do ano anterior, estes desintegraram-se, sujando tudo em redor. Agachando-se, usou o rebordo da mão para varrer os detritos e os juntar num monte. Podia ter contratado alguém que se ocupasse daquele ritual, mas assim, durante as suas visitas anuais, sempre se mantinha ocupada e presa a qualquer coisa de tangível e concreto. Não era filha única, mas todos os anos se encontrava sozinha na cripta. Lembrava sempre o irmão da data, esperando, mas nunca contando, que Robbie viesse. As expectativas só conduziam a desilusões. A mãe ensinara-lhe isso, avisando-a de que não tombasse presa das tentadoras promessas da vida. Os sobreviventes, costumava ela dizer, enfrentam os factos. Fora um ensinamento duro, e possivelmente pernicioso, para infligir a uma criança que não tinha idade suficiente para considerar de onde esse conselho provinha: de uma mulher incapaz de seguir o seu próprio conselho. És descendente de uma família de sonhadores, mas há uma diferença entre a realidade e o faz-de-conta. Compreendes? Isto ser-te-á útil. Prometo.
Porém, havia uma diferença entre os sonhos de infância de Jac e os das restantes pessoas. Os dela estavam recheados de barulhos assustadores e de terríveis visões. De ameaças às quais era impossível escapar. Os de Robbie eram fantásticos. Acreditava que um dia encontrariam o livro de fragrâncias que o antepassado deles trouxera do Egipto e usariam as suas fórmulas para criarem maravilhosos elixires. Sempre que falavam sobre isso, Jac sorria para ele daquela forma condescendente, típica das irmãs mais velhas, e dizia: a mãe disse-me que isso não passava de uma invenção. Não, o papá disse que é verdade, argumentava Robbie e corria à biblioteca em busca do antigo livro de história encadernado a couro, que, como que por hábito, já se abria na página certa. Robbie apontava então para a gravura de Plínio, o Velho, o autor e filósofo romano. Ele viu as fórmulas no livro dos perfumes de Cleópatra. Escreve sobre isso aqui mesmo. Jac detestava desiludir o irmão, mas era importante que ele compreendesse que tudo não passava de uma história exagerada. Se conseguisse convencê-lo, então, talvez conseguisse acreditar nisso também». In M. J. Rose, O Livro dos Perfumes Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-039-3.

Cortesia de CAutor/JDACT