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Alexandria.
Egipto. 1799
«(…)
Não é real, recordou Jac a si própria enquanto avançava para o interior, fechando
a porta atrás dela. O fantasma da mãe era uma aberração. Um produto da sua imaginação.
Um resíduo da sua doença. A derradeira relíquia daqueles terríveis tempos em que
o rosto que Jac via ao espelho não era o seu, mas o de alguém irreconhecível a olhá-la.
Tempos em que tivera tanta certeza de que os desenhos a lápis que fazia não eram
paisagens imaginárias, mas locais onde vivera, que fora à procura deles. Em que
conseguia escutar os gritos das pessoas que via serem enterradas vivas...,
queimadas vivas..., muito embora mais ninguém conseguisse. Jac tinha catorze anos
quando a falecida mãe falou com ela. Escutou-a com frequência nas horas que se seguiram
à sua morte, depois todos os dias, e por fim mais espaçadamente. Porém, depois
de Jac ter abandonado a França e se ter mudado para a América, só escutava a voz
dela uma vez por ano. Ali no sepulcro, em cada aniversário da morte da mãe. Uma
mãe que, basicamente, abandonara a filha demasiado cedo e com dramatismo. Audrey
morrera na oficina de perfumes, rodeada pelas mais deslumbrantes fragrâncias do
mundo. Para Jac, que a encontrou, aquela permaneceria uma arrepiante e chocante
memória olfativa. Os aromas a rosas e lírios, a lavanda, almíscar e patchuli, a
baunilha, violeta e verbena, a sândalo e salva, e a imagem daqueles olhos abertos
e sem vida, a olharem fixamente para o vazio. A imagem de um rosto sempre
animado, tornado rígido. De uma mão estendida no colo, como se, no último momento,
Audrey se tivesse lembrado de que estava a esquecer algo importante e tivesse esticado
o braço para o agarrar. Segurando ainda as flores de macieira que trouxera, Jac
atravessou o jazigo e pousou-as numa mesa de mármore ao lado da urna. Tinha uma
tarefa para cumprir ali. Ao erguer os ramos secos do ano anterior, estes desintegraram-se,
sujando tudo em redor. Agachando-se, usou o rebordo da mão para varrer os detritos
e os juntar num monte. Podia ter contratado alguém que se ocupasse daquele ritual,
mas assim, durante as suas visitas anuais, sempre se mantinha ocupada e presa a
qualquer coisa de tangível e concreto. Não era filha única, mas todos os anos
se encontrava sozinha na cripta. Lembrava sempre o irmão da data, esperando,
mas nunca contando, que Robbie viesse. As expectativas só conduziam a desilusões.
A mãe ensinara-lhe isso, avisando-a de que não tombasse presa das tentadoras promessas
da vida. Os sobreviventes, costumava ela dizer, enfrentam os factos. Fora
um ensinamento duro, e possivelmente pernicioso, para infligir a uma criança que
não tinha idade suficiente para considerar de onde esse conselho provinha: de uma
mulher incapaz de seguir o seu próprio conselho. És descendente de uma família
de sonhadores, mas há uma diferença entre a realidade e o faz-de-conta. Compreendes?
Isto ser-te-á útil. Prometo.
Porém,
havia uma diferença entre os sonhos de infância de Jac e os das restantes pessoas.
Os dela estavam recheados de barulhos assustadores e de terríveis visões. De ameaças
às quais era impossível escapar. Os de Robbie eram fantásticos. Acreditava que um
dia encontrariam o livro de fragrâncias que o antepassado deles trouxera do Egipto
e usariam as suas fórmulas para criarem maravilhosos elixires. Sempre que
falavam sobre isso, Jac sorria para ele daquela forma condescendente, típica das
irmãs mais velhas, e dizia: a mãe disse-me que isso não passava de uma invenção.
Não, o papá disse que é verdade, argumentava Robbie e corria à biblioteca em busca
do antigo livro de história encadernado a couro, que, como que por hábito, já se
abria na página certa. Robbie apontava então para a gravura de Plínio, o Velho,
o autor e filósofo romano. Ele viu as fórmulas no livro dos perfumes de
Cleópatra. Escreve sobre isso aqui mesmo. Jac detestava desiludir o irmão, mas
era importante que ele compreendesse que tudo não passava de uma história exagerada.
Se conseguisse convencê-lo, então, talvez conseguisse acreditar nisso também». In M.
J. Rose, O Livro dos Perfumes Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do
Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-039-3.
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