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Castelo
Sant’Angelo. Roma. 1453
«(…)
Não se atreveu a dizer mais. Por que disse que a relíquia era falsa? Não tive
intenção... Porquê? É um pedaço de prego de cerca de 70 centímetros de extensão
e meio centímetro de largura, respondeu Luca, a contragosto. O senhor pode examiná-lo,
embora agora esteja banhado em ouro e coberto de jóias. Ainda dá para perceber
seu tamanho. O inquisidor assentiu. E então? A abadia de São Pedro tem um cravo
da verdadeira cruz, assim como a abadia de São José. Procurei na biblioteca do
mosteiro para ver se havia outros pregos, e há cerca de quatrocentos só na
Itália. Mais ainda na França, na Espanha e na Inglaterra. O homem esperou, num
silêncio sem compaixão. Calculei o tamanho provável dos cravos, continuou Luca,
parecendo infeliz. E calculei o número de pedaços em que poderiam ter-se
quebrado. A conta não bate: existem relíquias demais para que todos venham de
apenas uma crucificação. A Bíblia diz que havia um cravo em cada palma e um
atravessando os pés; são apenas três cravos. Luca encarou o rosto sombrio de
seu inquisidor. Não creio que seja blasfémia dizer isso; a própria Bíblia
afirma com clareza. Além do mais, se contarmos os cravos usados na construção
da cruz, há mais quatro na junção central, para segurar o tronco. Então são
sete cravos originais; apenas sete. Vamos dizer que cada um tenha uns 12
centímetros: são cerca de 90 centímetros de cravos usados na verdadeira cruz,
mas há milhares de relíquias. Não estou afirmando que qualquer cravo ou
fragmento seja genuíno ou não, não me cabe julgar. Mas não posso deixar de
perceber que existem relíquias demais para que todas venham de uma mesma cruz. O
homem continuou sem dizer nada.
São
números, argumentou Luca, impotente. Eu penso assim, em números: eles me
interessam. Você se deu o direito de estudar isto? E também de decidir que existem
cravos demais em igrejas ao redor do mundo para que todos sejam verdadeiros,
para que todos venham da cruz sagrada? Luca caiu de joelhos, reconhecendo a
própria culpa. Não tive intenção de fazer mal, sussurrou para a figura
escondida pelas sombras. Só comecei a me perguntar, fiz os cálculos, e então o abade
encontrou o papel onde eu os tinha feito e... Ele hesitou. E o abade, coberto
de razão, acusou-o de heresia, estudos proibidos, citar erroneamente a Bíblia
para atingir os próprios objectivos, ler sem orientação, mostrar independência
de raciocínio, estudar sem permissão e na hora errada, estudar livros
proibidos... O homem continuou uma longa lista. Parou e encarou Luca. Pensar
por si mesmo. Esse é o pior, não é? Você fez juras a uma ordem com certas
crenças estabelecidas e depois começou a pensar por si mesmo.
Luca
assentiu. Peço desculpas. O sacerdócio não precisa de homens que pensem por si
mesmos. Eu sei, respondeu Luca, a voz muito baixa. Você fez um voto de
obediência, jurou não pensar por si próprio. Luca baixou a cabeça, esperando
pela sentença. A chama das velas tremeluziu quando, ali perto, uma porta se
abriu e uma corrente de vento varreu as salas. Sempre pensou desse jeito? Com
números? Luca assentiu. Teve amigos no mosteiro? Discutiu o assunto com alguém?
Ele negou com a cabeça. Não discuti isso. O homem examinou as anotações. Você
tem um associado chamado Freize? Luca sorriu pela primeira vez. Ele é apenas
criado da cozinha do mosteiro, respondeu. Ele se afeiçoou a mim assim que
cheguei, aos 11 anos. Ele próprio tinha apenas 12 ou 13. Convenceu-se de que eu
era magro demais, disse que não sobreviveria a um Inverno. Vivia trazendo
comida extra para mim, mas não passa de um criado.
Não
tem irmão ou irmã? Sou sozinho no mundo. Sente falta de seus pais? Sinto. Sente-se
solitário? O tom da sua voz deixava transparecer outra acusação. Creio que sim.
Sinto-me muito só se é isso que quer dizer. O homem encostou a pena preta nos
lábios, pensativo. Seus pais... Ele retomou a primeira pergunta do
interrogatório. Eram velhos quando você nasceu? Sim, respondeu Luca, surpreso. Sim.
Houve falatório na época, imagino. Um casal tão velho, de repente, dar à luz um
filho, e ainda por cima um tão bonito, que se tornou um rapaz excepcionalmente
inteligente? É uma aldeia pequena, respondeu Luca, na defensiva. As pessoas não
têm o que fazer além de trocar mexericos. Mas você é de facto bonito; e também
inteligente. E, ainda assim, eles não se gabaram de você nem o exibiram.
Mantiveram-no em casa, sossegado. Éramos próximos, respondeu Luca. Éramos uma
família pequena e muito unida. Não incomodávamos ninguém, levávamos uma vida
tranquila, os três.
Então,
por que o entregaram à Igreja? Por que pensaram que você estaria mais seguro lá
dentro? Tinha algum dom especial? Precisava da protecção da Igreja? Luca, ainda
de joelhos, tentou desviar-se da pergunta, pouco à vontade. Não sei. Eu era
criança, tinha apenas 11 anos. Não sei o que estavam pensando. O inquisidor
esperou. Eles queriam que eu tivesse a educação de um padre, completou, por
fim. Meu pai... Hesitou ao pensar no amado pai, no cabelo grisalho e na mão
firme, na ternura que tinha com o filho pequeno, estranho e desajeitado. Meu
pai ficou muito orgulhoso quando aprendi a ler, por eu ter aprendido sozinho os
números. Ele não sabia ler ou escrever, e julgava que fossem grandes talentos.
E depois aprendi a língua dos ciganos, quando alguns deles passaram pela
aldeia. O homem tomou nota. Você sabe falar outras línguas? As pessoas
comentaram que aprendi romani num dia». In Philippa Gregory, O Substituto, 2012,
Editora Galera Record, colecção Ordem da Escuridão, 2015, ISBN
978-850-140-319-3.
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