domingo, 5 de fevereiro de 2017

O Substituto. Philippa Gregory. «O homem continuou sem dizer nada. São números, argumentou Luca, impotente. Eu penso assim, em números: eles me interessam»

wikipedia e jdact

Castelo Sant’Angelo. Roma. 1453
«(…) Não se atreveu a dizer mais. Por que disse que a relíquia era falsa? Não tive intenção... Porquê? É um pedaço de prego de cerca de 70 centímetros de extensão e meio centímetro de largura, respondeu Luca, a contragosto. O senhor pode examiná-lo, embora agora esteja banhado em ouro e coberto de jóias. Ainda dá para perceber seu tamanho. O inquisidor assentiu. E então? A abadia de São Pedro tem um cravo da verdadeira cruz, assim como a abadia de São José. Procurei na biblioteca do mosteiro para ver se havia outros pregos, e há cerca de quatrocentos só na Itália. Mais ainda na França, na Espanha e na Inglaterra. O homem esperou, num silêncio sem compaixão. Calculei o tamanho provável dos cravos, continuou Luca, parecendo infeliz. E calculei o número de pedaços em que poderiam ter-se quebrado. A conta não bate: existem relíquias demais para que todos venham de apenas uma crucificação. A Bíblia diz que havia um cravo em cada palma e um atravessando os pés; são apenas três cravos. Luca encarou o rosto sombrio de seu inquisidor. Não creio que seja blasfémia dizer isso; a própria Bíblia afirma com clareza. Além do mais, se contarmos os cravos usados na construção da cruz, há mais quatro na junção central, para segurar o tronco. Então são sete cravos originais; apenas sete. Vamos dizer que cada um tenha uns 12 centímetros: são cerca de 90 centímetros de cravos usados na verdadeira cruz, mas há milhares de relíquias. Não estou afirmando que qualquer cravo ou fragmento seja genuíno ou não, não me cabe julgar. Mas não posso deixar de perceber que existem relíquias demais para que todas venham de uma mesma cruz. O homem continuou sem dizer nada.
São números, argumentou Luca, impotente. Eu penso assim, em números: eles me interessam. Você se deu o direito de estudar isto? E também de decidir que existem cravos demais em igrejas ao redor do mundo para que todos sejam verdadeiros, para que todos venham da cruz sagrada? Luca caiu de joelhos, reconhecendo a própria culpa. Não tive intenção de fazer mal, sussurrou para a figura escondida pelas sombras. Só comecei a me perguntar, fiz os cálculos, e então o abade encontrou o papel onde eu os tinha feito e... Ele hesitou. E o abade, coberto de razão, acusou-o de heresia, estudos proibidos, citar erroneamente a Bíblia para atingir os próprios objectivos, ler sem orientação, mostrar independência de raciocínio, estudar sem permissão e na hora errada, estudar livros proibidos... O homem continuou uma longa lista. Parou e encarou Luca. Pensar por si mesmo. Esse é o pior, não é? Você fez juras a uma ordem com certas crenças estabelecidas e depois começou a pensar por si mesmo.
Luca assentiu. Peço desculpas. O sacerdócio não precisa de homens que pensem por si mesmos. Eu sei, respondeu Luca, a voz muito baixa. Você fez um voto de obediência, jurou não pensar por si próprio. Luca baixou a cabeça, esperando pela sentença. A chama das velas tremeluziu quando, ali perto, uma porta se abriu e uma corrente de vento varreu as salas. Sempre pensou desse jeito? Com números? Luca assentiu. Teve amigos no mosteiro? Discutiu o assunto com alguém? Ele negou com a cabeça. Não discuti isso. O homem examinou as anotações. Você tem um associado chamado Freize? Luca sorriu pela primeira vez. Ele é apenas criado da cozinha do mosteiro, respondeu. Ele se afeiçoou a mim assim que cheguei, aos 11 anos. Ele próprio tinha apenas 12 ou 13. Convenceu-se de que eu era magro demais, disse que não sobreviveria a um Inverno. Vivia trazendo comida extra para mim, mas não passa de um criado.
Não tem irmão ou irmã? Sou sozinho no mundo. Sente falta de seus pais? Sinto. Sente-se solitário? O tom da sua voz deixava transparecer outra acusação. Creio que sim. Sinto-me muito só se é isso que quer dizer. O homem encostou a pena preta nos lábios, pensativo. Seus pais... Ele retomou a primeira pergunta do interrogatório. Eram velhos quando você nasceu? Sim, respondeu Luca, surpreso. Sim. Houve falatório na época, imagino. Um casal tão velho, de repente, dar à luz um filho, e ainda por cima um tão bonito, que se tornou um rapaz excepcionalmente inteligente? É uma aldeia pequena, respondeu Luca, na defensiva. As pessoas não têm o que fazer além de trocar mexericos. Mas você é de facto bonito; e também inteligente. E, ainda assim, eles não se gabaram de você nem o exibiram. Mantiveram-no em casa, sossegado. Éramos próximos, respondeu Luca. Éramos uma família pequena e muito unida. Não incomodávamos ninguém, levávamos uma vida tranquila, os três.
Então, por que o entregaram à Igreja? Por que pensaram que você estaria mais seguro lá dentro? Tinha algum dom especial? Precisava da protecção da Igreja? Luca, ainda de joelhos, tentou desviar-se da pergunta, pouco à vontade. Não sei. Eu era criança, tinha apenas 11 anos. Não sei o que estavam pensando. O inquisidor esperou. Eles queriam que eu tivesse a educação de um padre, completou, por fim. Meu pai... Hesitou ao pensar no amado pai, no cabelo grisalho e na mão firme, na ternura que tinha com o filho pequeno, estranho e desajeitado. Meu pai ficou muito orgulhoso quando aprendi a ler, por eu ter aprendido sozinho os números. Ele não sabia ler ou escrever, e julgava que fossem grandes talentos. E depois aprendi a língua dos ciganos, quando alguns deles passaram pela aldeia. O homem tomou nota. Você sabe falar outras línguas? As pessoas comentaram que aprendi romani num dia». In Philippa Gregory, O Substituto, 2012, Editora Galera Record, colecção Ordem da Escuridão, 2015, ISBN 978-850-140-319-3.

Cortesia de EGRecord/JDACT