sábado, 25 de fevereiro de 2017

A Oficina dos Livros Proibidos. Eduardo Roca. «Ao mesmo tempo que o marido manobrava no sentido da ascensão social, Agripina continuou a viver rodeada de criadas. Embora a princípio tenha protestado»

jdact

A cidade. Colónia. 1435
«(…) A vestimenta era constituída por valiosas roupagens de veludo preto, e um manto de pele de bela confecção resguardava-o do leve frio. Na cabeça, um chapéu largo e abaulado recentemente trazido da Flandres. Heller continuava a recitar o discurso enquanto a sua mente visitava outros lugares. Embora continuasse a sorrir, os seus olhos cinzentos emoldurados por umas sobrancelhas quase inexistentes deixaram de prestar atenção à plebe para olharem para dentro, para as suas recordações. Sentia-se extremamente satisfeito com o que conseguira. Hábil no ofício da construção, que herdou do pai, chegou muito jovem a mestre; o mais jovem de toda a Renânia. Mas rapidamente a sua ambição o conduziu pelas veredas da política e do poder. Subiu os degraus dentro do seu grémio até atingir a direcção do conselho da congregação dos mestres construtores. A partir daí, colheu fama de duro negociador na sua luta feroz pela manutenção da autonomia de todos os seus agremiados perante o poder local, sempre disposto a intervir, tentando controlar os preços, as transacções, os impostos. Heller aprendeu de maneira natural a ser persuasivo, constante e tenaz. E também a mostrar-se ameaçador quando era necessário. Porém, acima de tudo aprendeu que sem poder ficaria sempre às portas de atingir as suas metas.
Para as conseguir abrir tinha de ganhar a confiança dos nobres. Muitos burgueses compravam por bom dinheiro um título nobiliário. Pugnavam por conseguir a chave para uma muito privada instância do prestígio social, um patamar de onde se decidia o destino do resto da população. Com paciência de formiga, Heller foi acumulando o dinheiro necessário. De repente, apresentou-se-lhe um atalho: a filha de um idoso barão atravessou-se no seu caminho. Agripina, assim chamada em honra da mulher do imperador romano Cláudio, que cedeu o seu nome à cidade (Colonia Agrippina), era apenas uma adolescente fruto de um casamento tardio. A sua mãe falecera quando ela nasceu, pelo que a doce e ingénua rapariga cresceu menina mimada por um pai com mais de sessenta anos e pelas criadas que dela cuidavam.
A candura da moça era tal que, ao conhecê-la, Heller compreendeu que seria um delito não aproveitar a oportunidade. Fez uso de toda a sua capacidade de persuasão até que a menina se sentiu a mulher mais apaixonada do mundo. O casamento acabou por ser celebrado, malgrado a oposição inicial do barão, que pretendia reservar a filha para algum nobre de melhor linhagem. Heller, portanto, viu-se tornado barão por obra e graça do sacramento do matrimónio. Enquanto saboreava o mel dos esponsais precoces, conseguiu fazer com que o sogro, cada vez mais débil, lhe fosse confiando a direcção das suas propriedades e, sobretudo, a representação em público do seu cargo. Quando o barão faleceu, Heller já era tratado como mais um nobre e, com pouco mais de quarenta anos, um firme candidato a cargos de poder.
Ao mesmo tempo que o marido manobrava no sentido da ascensão social, Agripina continuou a viver rodeada de criadas. Embora a princípio tenha protestado, batendo o pé, tentando chamar a atenção de um marido que via cada vez menos, acabou por se render. Parecia que o seu destino estava escrito: viver sem que nada de material lhe faltasse e sem homem a quem abraçar. Enquanto o povo de Colónia o interrompia com aplausos, Heller desviou por um instante o olhar para a sua mulher e fez uma pausa. Chegara o momento dos agradecimentos. O novo Burgermeister estava consciente de que devia cuidar muito bem das suas relações. Sabia que estava colocado num lugar idóneo conquanto frágil. Encontrava-se entre os nobres pelo casamento. Era membro dos grémios, sempre tensos com as autoridades locais, das quais era agora a cabeça visível. Um passo em falso e ninguém lho perdoaria.
Havia ainda o arcebispo, o mais intransigente, o mais perigoso. Dieter von Morse era um dos homens mais poderosos de todo o Sacro Império Romano Germânico e, além de arcebispo, um dos sete príncipes eleitores. Entre as prerrogativas destes estava a de escolher o imperador. Devia mostrar-se submisso e obediente perante ele. A relação com o imperador, com o papa de Roma e com a nobreza, os Von Morse eram uma das famílias mais antigas, tornava-o depositário do poder autêntico em Colónia, se bem que vivesse realmente em Bona. As suas visitas eram constantes e inúmeras as suas propriedades por toda a cidade. Também o eram no campo: se um dia impedisse a passagem pelo seu território, Colónia ficaria isolada. Até a água do Reno se deteria a uma só ordem dele». In Eduardo Roca, A Oficina dos Livros Proibidos, O Conhecimento pode Mudar o Mundo, 2011, tradução de Óscar Mascarenhas, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-754-015-8.

Cortesia de MarcadorE/JDACT