quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

O Fundador. Aydano Roriz. «O que é preciso, se me permite a ousadia, Sereníssimo, é Vossa Alteza tornar-se senhor de verdade daquela “vossa conquista”»

Cortesia de wikipedia e jdact

Para entender a História
«(…) Naturalmente, Sereníssimo, e fazendo um gesto entre cortês e humilde, como se pedindo desculpas. Mas é facto que o povo sofre, Sereníssimo. Gentes morrem de fome pelo Reino inteiro. E o que é que tu queres que eu faça, Castanheira?, retrucou o rei, reassumindo o seu ar de Piedoso. É a sina do povo. Sempre se morreu de fome no mundo, e sempre se morrerá. O Brasil pode ser a solução, Alteza!, contrapôs com algum entusiasmo o conde. Se colonizarmos verdadeiramente aquela vossa conquista, poderemos dar um trato de terra para essa gente e colher muito açúcar. O rei esboçou um pálido sorriso cúmplice. Adorava que lhe chamassem as novas terras como sua conquista. Encorajado, Castanheira prosseguiu. Defendeu que, pagando vinte e cinco por cento de juros anuais, e com uma dívida equivalente a mais de dois anos de receitas, o déficit do Tesouro era como uma bola de neve que rolava serra abaixo: à medida que o tempo passava, só crescia. Urgia encontrar novas fontes de receitas para o Reino. E os empréstimos compulsórios que me induzistes a decretar?, espicaçou o rei, com um meio sorriso nos lábios. Têm ajudado, Sereníssimo. Mas não resolvem o problema, aduziu Castanheira um pouco constrangido, uma vez que ele próprio, como fidalgo, havia sido dispensado da medida. Já o Brasil...
O Brasil, ora, o Brasil!, interrompeu o rei, um tom acima do normal. Não mandámos para lá Martim Afonso? Não gastámos trezentos mil cruzados com a expedição dele? E de que adiantou? Dinheiro deitado à rua, isso sim! Concordo, Sereníssimo. Mas isso foi há quinze anos! Agora, o facto é que os franceses estão a mexer-se outra vez. E se Vossa Alteza não tomar medidas rigorosas, corremos o risco de perder Santa Cruz, e colocando-se na ponta do estofado, de modo a ficar mais próximo à mesa, o vedor da Fazenda argumentou que era preciso povoar verdadeiramente aquela colónia, e não simplesmente mandar degredados para lá. Que urgia levar a justiça D'el-rei para a província, para acabar com os desentendimentos entre os capitães-donatários e os povoadores. O que é preciso, se me permite a ousadia, Sereníssimo, é Vossa Alteza tornar-se senhor de verdade daquela vossa conquista. É a única maneira que vejo de manter os franceses longe do Brasil. O rei cruzou as mãos por cima do ventre rechonchudo e ficou a girar os dedos polegares, ora num sentido, ora no outro. Eh, o Diogo Gouveia, quando era reitor na Universidade de Paris, insistiu muito nisso comigo, concordou João III, desalentado. Mas o que se há de fazer! Volta e meia não estamos a combater os corsários? Não mandei já não sei quantos protestos para Francisco de França, e agora para o filho dele, esse menino aí... o Henrique? Não firmei já tratados? Não me comprometi já a pagar dez mil cruzados ao capitão-mor da armada de França, para que ele próprio combata os piratas da Bretanha e Normandia? Não comprei até a carta de corso, que o salafrário do Francisco de França deu ao Jean Ango?
O vexame acontecera no mesmo ano em que Martim Afonso fora mandado para iniciar a colonização do Brasil. De modo a evitar confrontos com a França, o rei de Portugal submetera-se a pagar quatro mil ducados, ou catorze quilos de ouro, para que Jean Ango, visconde de Dieppe, parasse de roubar pau-de-tinta nas Terras de Santa Cruz. Mas também... Jean Ango era mesmo poderoso! Dono de mais de cem navios, o riquíssimo visconde francês ficara indignado com a morte, pelos guarda-costas portugueses, de uma boa centena de homens seus no Brasil. Em represália, ameaçara bloquear o porto de Lisboa e declarar, pessoalmente, guerra a Portugal. Não dividi já aquelas terras, continuou o rei, do mesmo modo que dividimos os Açores e a Madeira? Está bem. Concordo que as rusgas entre os capitães e os colonos me estão a enfadar um pouco. Mas Portugal precisa é de ouro, Castanheira! Ou de mercadorias que possa trocar por ouro. Terra, temos de sobra. Tanto no Algarve, quanto em África e nas índias. É exactamente aí onde eu queria chegar, Sereníssimo, ajuntou o conselheiro, com inflexão de voz especialmente respeitosa. A terra do Algarve não é boa. As índias, como Vossa Alteza sempre diz, têm-se mostrado um sumidouro de gentes e de dinheiros. E em África os mouros não nos dão sossego. Anos atrás Vossa Alteza não decidiu até abandonar as praças-fortes de Arzila e Alcácer Ceguer, por ser muito caro mantê-las? Então... É certo que as tais capitanias hereditárias não são exactamente um sucesso no Brasil. Das quinze, só duas renderam alguma coisa. Mas Vossa Alteza sabe porquê? Na opinião deste vosso humilde conselheiro, porque o Brasil não é os Açores, e muito menos a Ilha da Madeira. É uma terra tão grande, que é quase impossível guardar. E tão longe, que muitos dos donatários nem para lá foram, e os que foram sentiram-se desamparados. Perdoe-me, Ataíde, mas isto não me parece justo, reagiu António Carneiro, secretário-geral do Reino. Então alguns capitães não levaram para Santa Cruz esquadras bem apetrechadas, colonos, artífices de várias profissões?... Não, o problema não é esse, meu amigo. O problema é que aquilo é uma terra selvagem. Os gentios brasis não comeram o Francisco Pereira Coutinho!» In Aydano Roriz, O Fundador, Saída de Emergência, colecção a História de Portugal em Romance, 2015, ISBN 978-989-637-740-3.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT