Cortesia
de wikipedia e jdact
O
sangue dos deuses
«Nem
todos foram marcados com sangue. O corpo dele estava deitado no mármore frio, a
pedra, como prova, contrastando com as linhas vermelhas que pingavam pelos
bancos. Os que se afastavam olharam de volta pelo menos uma vez, quase sem
acreditar que o tirano não se levantaria. César havia lutado, mas eles tinham
sido muitos, e determinados demais. Não podiam ver seu rosto. Nos últimos
instantes o líder de Roma havia puxado as dobras soltas da toga, passando o
tecido sobre a cabeça enquanto o agarravam e esfaqueavam. A brancura do pano
ficou marcada com rasgos. Suas entranhas tinham-se esvaziado enquanto ele se
afrouxava e tombava de lado. O cheiro subiu pelo ar no teatro. Não havia
dignidade naquela atrocidade que haviam feito. Mais de vinte homens estavam
manchados pela violência, alguns ainda ofegando em grandes haustos. Ao redor
havia um número duas vezes maior, os que não tinham usado facas, mas
permaneceram e olharam, sem se mexer para salvar César. Os que tinham feito
parte ainda estavam atordoados com a violência e a sensação do sangue quente na
pele. Muitos haviam servido no Exército. Viram morte antes, mas em terras
estrangeiras e cidades exóticas. Não em Roma, não ali.
Marco
Brutus encostou a lâmina na palma de cada uma das mãos, deixando uma mancha
vermelha. Décimo Júnio o viu fazer isso e, depois de um momento de espanto,
marcou as próprias mãos com sangue fresco. Quase com reverência, os outros
copiaram o gesto. Brutus tinha dito a eles que não iriam caminhar com culpa.
Havia dito que tinham salvado a nação de um tirano. Atrás dele, deram os
primeiros passos em direcção a um largo facho de luz que levava para o exterior.
Brutus respirou fundo quando chegou ao sol, parando na soleira e deixando o
calor penetrar no corpo. Estava vestido de soldado, o único homem ali que usava
armadura e um gládio no cinto. À beira dos 60 anos, suas pernas continuavam
fortes, enraizadas na terra. Havia lágrimas em seus olhos, e sentia que as
sombras da idade e da traição foram afastadas, que as cicatrizes tinham sido
lavadas da pele, de modo que ele estava renovado.
Ouviu
os homens vestidos com togas se reunirem às suas costas. Cássio chegou ao lado,
tocando-o de leve no ombro numa atitude de conforto ou apoio. Brutus não olhou
para ele. Seus olhos estavam erguidos para o sol. Agora podemos homenageá-lo,
declarou quase que para si mesmo. Podemos amontoar a glória em sua memória até
que ele seja esmagado sob tudo isso. Cássio ouviu e suspirou, e no humor em que
Brutus se encontrava o som pareceu um zumbido ininteligível. Os senadores
estarão esperando a notícia, amigo, murmurou Cássio. Vamos deixar o velho mundo
para trás neste local. Brutus o encarou, e o senador magro quase se encolheu
com o que viu naqueles olhos. O momento se alongou, e nenhum dos que estavam
atrás emitiu qualquer som. Apesar de terem matado, só então começaram a temer a
cidade ao redor. Foram levados como folhas num vendaval, deixando de lado a
razão para acompanhar homens mais fortes. A realidade pairava no ar, Roma
refeita em grãos de poeira dourada. Sem mais palavras, Brutus saiu ao sol, e
eles foram atrás.
A
princípio as ruas estavam movimentadas, os milhares de negociantes e
mercadorias à mostra em cada espaço disponível bloqueando o calçamento de
pedras. Uma onda de silêncio vinha do Teatro de Pompeu, desvanecendo-se atrás
dos senadores, mas pairando sobre eles enquanto viravam para o fórum. Os vendedores
ambulantes, os servos e os cidadãos de Roma se imobilizavam ao ver quase
sessenta homens usando togas brancas, comandados por um de armadura cuja mão
direita foi até ao punho da espada enquanto caminhava. Roma tinha visto
desfiles antes, milhares, porém não havia alegria entre aqueles que subiam o
monte Capitolino. Sussurros e cutucões indicavam as manchas vermelhas nas mãos
dos homens, os borrões de sangue ainda brilhantes nos mantos. Estrangeiros
balançavam a cabeça com medo e ficavam bem atrás, como se o grupo carregasse
perigo ou uma doença. Brutus foi andando para o oeste e para cima. Sentia uma
ansiedade estranha, a primeira emoção verdadeira desde que havia cravado o
ferro no seu maior amigo e sentido o tremor que lhe revelou que tinha alcançado
o coração. Ansiava por olhar o fórum e a sede do Senado, o centro de pedra da
vasta República. Precisava lutar para não acelerar o passo, manter o ritmo
lento que servia ao mesmo tempo como dignidade e protecção a eles. Não fugiriam
do que tinham feito. Sua sobrevivência dependia de não demonstrar culpa nem
medo. Entraria no fórum como libertador.
No
topo do Capitolino, Brutus parou. Podia ver o espaço aberto do fórum, cercado
de templos. A sede do Senado reluzia em branco, imaculada, os guardas junto à
porta eram figuras minúsculas à distância. O sol estava queimando, e ele podia
sentir o suor escorrer por dentro do peitoral ornamentado. Os senadores às suas
costas subiam lentamente, sem entender por que haviam parado. A fileira ao
redor dele se alargou, porém a autoridade daqueles homens havia sido exaurida
naquela manhã, e nenhum deles, nem mesmo Cássio ou Suetónio, ousava descer o
morro sem que Brutus fosse à frente. Somos os Liberatores, anunciou
Brutus, de súbito. Naquele lugar há muitos que não receberão bem o que fizemos.
Há outras centenas de pessoas que respirarão aliviadas ao saber que o tirano
está morto e Roma em segurança, que a República está em segurança. Haverá uma proposta
de amnistia que será aprovada. Tudo já foi decidido. Até lá, lembrem-se de sua
dignidade, de sua honra. Não há vergonha no que fizemos». In Conn Iggulden, O Imperador, O
sangue dos deuses, 2013, Editora Record, 2014, ISBN 978-850-140-381-0.
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