segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O Imperador. Conn Iggulden. «No topo do Capitolino, Brutus parou. Podia ver o espaço aberto do fórum, cercado de templos. A sede do Senado reluzia em branco, imaculada, os guardas junto à porta eram figuras minúsculas à distância»

Cortesia de wikipedia e jdact

O sangue dos deuses
«Nem todos foram marcados com sangue. O corpo dele estava deitado no mármore frio, a pedra, como prova, contrastando com as linhas vermelhas que pingavam pelos bancos. Os que se afastavam olharam de volta pelo menos uma vez, quase sem acreditar que o tirano não se levantaria. César havia lutado, mas eles tinham sido muitos, e determinados demais. Não podiam ver seu rosto. Nos últimos instantes o líder de Roma havia puxado as dobras soltas da toga, passando o tecido sobre a cabeça enquanto o agarravam e esfaqueavam. A brancura do pano ficou marcada com rasgos. Suas entranhas tinham-se esvaziado enquanto ele se afrouxava e tombava de lado. O cheiro subiu pelo ar no teatro. Não havia dignidade naquela atrocidade que haviam feito. Mais de vinte homens estavam manchados pela violência, alguns ainda ofegando em grandes haustos. Ao redor havia um número duas vezes maior, os que não tinham usado facas, mas permaneceram e olharam, sem se mexer para salvar César. Os que tinham feito parte ainda estavam atordoados com a violência e a sensação do sangue quente na pele. Muitos haviam servido no Exército. Viram morte antes, mas em terras estrangeiras e cidades exóticas. Não em Roma, não ali.
Marco Brutus encostou a lâmina na palma de cada uma das mãos, deixando uma mancha vermelha. Décimo Júnio o viu fazer isso e, depois de um momento de espanto, marcou as próprias mãos com sangue fresco. Quase com reverência, os outros copiaram o gesto. Brutus tinha dito a eles que não iriam caminhar com culpa. Havia dito que tinham salvado a nação de um tirano. Atrás dele, deram os primeiros passos em direcção a um largo facho de luz que levava para o exterior. Brutus respirou fundo quando chegou ao sol, parando na soleira e deixando o calor penetrar no corpo. Estava vestido de soldado, o único homem ali que usava armadura e um gládio no cinto. À beira dos 60 anos, suas pernas continuavam fortes, enraizadas na terra. Havia lágrimas em seus olhos, e sentia que as sombras da idade e da traição foram afastadas, que as cicatrizes tinham sido lavadas da pele, de modo que ele estava renovado.
Ouviu os homens vestidos com togas se reunirem às suas costas. Cássio chegou ao lado, tocando-o de leve no ombro numa atitude de conforto ou apoio. Brutus não olhou para ele. Seus olhos estavam erguidos para o sol. Agora podemos homenageá-lo, declarou quase que para si mesmo. Podemos amontoar a glória em sua memória até que ele seja esmagado sob tudo isso. Cássio ouviu e suspirou, e no humor em que Brutus se encontrava o som pareceu um zumbido ininteligível. Os senadores estarão esperando a notícia, amigo, murmurou Cássio. Vamos deixar o velho mundo para trás neste local. Brutus o encarou, e o senador magro quase se encolheu com o que viu naqueles olhos. O momento se alongou, e nenhum dos que estavam atrás emitiu qualquer som. Apesar de terem matado, só então começaram a temer a cidade ao redor. Foram levados como folhas num vendaval, deixando de lado a razão para acompanhar homens mais fortes. A realidade pairava no ar, Roma refeita em grãos de poeira dourada. Sem mais palavras, Brutus saiu ao sol, e eles foram atrás.
A princípio as ruas estavam movimentadas, os milhares de negociantes e mercadorias à mostra em cada espaço disponível bloqueando o calçamento de pedras. Uma onda de silêncio vinha do Teatro de Pompeu, desvanecendo-se atrás dos senadores, mas pairando sobre eles enquanto viravam para o fórum. Os vendedores ambulantes, os servos e os cidadãos de Roma se imobilizavam ao ver quase sessenta homens usando togas brancas, comandados por um de armadura cuja mão direita foi até ao punho da espada enquanto caminhava. Roma tinha visto desfiles antes, milhares, porém não havia alegria entre aqueles que subiam o monte Capitolino. Sussurros e cutucões indicavam as manchas vermelhas nas mãos dos homens, os borrões de sangue ainda brilhantes nos mantos. Estrangeiros balançavam a cabeça com medo e ficavam bem atrás, como se o grupo carregasse perigo ou uma doença. Brutus foi andando para o oeste e para cima. Sentia uma ansiedade estranha, a primeira emoção verdadeira desde que havia cravado o ferro no seu maior amigo e sentido o tremor que lhe revelou que tinha alcançado o coração. Ansiava por olhar o fórum e a sede do Senado, o centro de pedra da vasta República. Precisava lutar para não acelerar o passo, manter o ritmo lento que servia ao mesmo tempo como dignidade e protecção a eles. Não fugiriam do que tinham feito. Sua sobrevivência dependia de não demonstrar culpa nem medo. Entraria no fórum como libertador.
No topo do Capitolino, Brutus parou. Podia ver o espaço aberto do fórum, cercado de templos. A sede do Senado reluzia em branco, imaculada, os guardas junto à porta eram figuras minúsculas à distância. O sol estava queimando, e ele podia sentir o suor escorrer por dentro do peitoral ornamentado. Os senadores às suas costas subiam lentamente, sem entender por que haviam parado. A fileira ao redor dele se alargou, porém a autoridade daqueles homens havia sido exaurida naquela manhã, e nenhum deles, nem mesmo Cássio ou Suetónio, ousava descer o morro sem que Brutus fosse à frente. Somos os Liberatores, anunciou Brutus, de súbito. Naquele lugar há muitos que não receberão bem o que fizemos. Há outras centenas de pessoas que respirarão aliviadas ao saber que o tirano está morto e Roma em segurança, que a República está em segurança. Haverá uma proposta de amnistia que será aprovada. Tudo já foi decidido. Até lá, lembrem-se de sua dignidade, de sua honra. Não há vergonha no que fizemos». In Conn Iggulden, O Imperador, O sangue dos deuses, 2013, Editora Record, 2014, ISBN 978-850-140-381-0.

Cortesia de ERecord/JDACT