sábado, 4 de fevereiro de 2017

Justine. Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «… cada casal era inferior ao precedente e Sofia, a sabedoria, era a fêmea do trigésimo casal e a menos perfeita de todas). Tudo o que é em excesso é pecado»

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«(…) O seu centro espiritual era a paisagem esquecida de Soma, onde o corpo atormentado do jovem soldado foi um dia depositado na sua divindade fictícia; a sua sede temporal era o Clube dos Correctores, onde, autênticos gnósticos (gnose; o corpo astral dos que morrem prematuramente, creêm poder realizar actos corporais quando, com efeito, não possuem corpo físico e agem em pensamento, Paracelso), os correctores vinham, nas suas roupas de algodão, beber café, fumar charutos rançosos e contemplar Capodistria, como os vagabundos dos cais contemplam um pescador ou um pintor. O primeiro simboliza, para mim, as grandes conquistas do homem nos domínios da matéria, do espaço e do tempo, que devem inevitavelmente abandonar o seu conhecimento, penosamente adquirido, ao conquistador no seu túmulo; o outro não era um símbolo mas o limbo vivo do livre-arbítrio, onde a minha bem-amada Justine errava em busca (no meio de uma terrível solidão de espírito) do lampejo que lhe revelaria uma nova perspectiva do seu ser. Nela, como verdadeira alexandrina, a licença era uma forma estranha mas real de abnegação, uma máscara da liberdade; e se eu via nela um testemunho da cidade não pensava em Alexandria, nem em Plotino, mas na filha infeliz de Valentino que caiu, não como Lúcifer, por se ter rebelado contra Deus, mas pelo excessivo desejo que tinha de se unir a Ele (a doutrina gnóstica considera a criação um erro... Imagina um Deus primordial que engendrou manifestações de si próprio sob a forma de casais macho-fêmea; cada casal era inferior ao precedente e Sofia, a sabedoria, era a fêmea do trigésimo casal e a menos perfeita de todas). Tudo o que é em excesso é pecado.
Separada da divina harmonia, caiu, diz o filósofo trágico, e tornou-se a manifestação da matéria; e todo o universo da sua cidade e do mundo nasceu da sua agonia e do seu remorso. O gérmen trágico que engendrou os seus pensamentos era o gérmen de um gnosticismo pessimista. Sei que esta identificação era real porque, muito mais tarde, quando com tanta hesitação e maus presságios ela me permitiu entrar para o pequeno círculo que todos os meses se reunia em torno de Balthazar, eram sempre as suas referências ao gnosticismo as que mais a interessavam. Lembro-me da noite em que com tanto fervor e humildade ela lhe perguntou se tinha interpretado correctamente o seu pensamento: Quer dizer que Deus nunca nos criou nem tão-pouco pensou fazê-lo, mas que somos obra de uma divindade inferior, um demiurgo, que se supunha Deus? Ah!, como isso parece provável; e é esse hubris presunçoso que foi transmitido aos nossos filhos. E de uma outra vez, íamos lado a lado, ela colocou-se, repentinamente, diante de mim, e segurando-me as abas do casaco, olhou-me bem nos olhos e disse-me: e tu, em que crês? Nunca dizes nada. Basta-te rir, uma vez por outra. Não sabia á que lhe havia de responder; para mim todas as ideias se equivalem; o facto de existirem, apenas prova que alguém as criou. Que me interessa que sejam objectivamente justas ou falsas? De qualquer modo, não podem ficar indefinidamente no mesmo estado». In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1957, Justine, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia de PdQuixote/JDACT