segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

A Biblioteca Desaparecida. Luciano Canfora. «Num desses relatórios, Demétrio ilustrava a conveniência de adquirir também os livros da lei judaica. É necessário, prosseguia, que esses livros, sob forma correcta, tenham lugar em tua biblioteca»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Biblioteca Universal
«(…) Demétrio havia sido o plenipotenciário da biblioteca. Por vezes o rei passava os rolos em revista, como manípulos de soldados. Quantos rolos temos?, perguntava. E Demétrio o actualizava sobre os números. Tinham-se proposto um objectivo, haviam feito cálculos. Haviam estabelecido que, para recolher em Alexandria os livros de todos os povos da terra, seria necessário um total de 500 mil rolos. Ptolomeu elaborou uma carta a todos os soberanos e governantes da terra, na qual pedia que não hesitassem em lhe enviar' as obras de todos os gêneros de autores: poetas e prosadores, retóricos e sofistas, médicos e adivinhos, historiadores e todos os outros mais. Ordenou que fossem copiados todos os livros que por acaso se encontrassem nos navios que faziam escala em Alexandria, que os originais fossem retidos e aos proprietários fossem entregues as cópias; esse fundo foi posteriormente chamado de o fundo dos navios. Vez por outra, Demétrio fazia uma exposição escrita ao soberano, que começava assim: Demétrio ao grande rei. Em obediência à tua ordem de acrescentar às colecções da biblioteca, para completá-la, os livros que ainda faltam, e de restaurar adequadamente os defeituosos, dediquei grande cuidado, e agora faço-te um relatório etc..
Num desses relatórios, Demétrio ilustrava a conveniência de adquirir também os livros da lei judaica. É necessário, prosseguia, que esses livros, sob forma correcta, tenham lugar em tua biblioteca. E, seguro de recorrer a um nome bem-vindo ao soberano, invocava a autoridade de Hecateu de Abdera, que em suas Histórias do Egipto tanto espaço dedicara à história judaica. O argumento de Hecateu, conforme é citado por Demétrio, era um tanto curioso. Soava mais ou menos assim: não admira que, em sua maioria, os autores, poetas e a multidão de historiadores não tenham mencionado aqueles livros e os homens que viveram e vivem de acordo com eles; não por acaso se abstiveram, devido ao elemento sagrado neles contido. Quando já se contavam 200 mil rolos, Demétrio voltou ao assunto durante uma visita do rei à biblioteca. Dizem-me, assim se dirigindo ao soberano, que as leis dos judeus também são livros dignos de transcrição e inclusão em tua biblioteca. Está bem, respondeu Ptolomeu, e o que te impede de providenciar essa aquisição? Como sabes, tens à tua disposição tudo o que é necessário, homens e meios. Mas é preciso traduzi-los', observou Demétrio, estão escritos em hebraico, não em siríaco, como geralmente se crê; é uma língua totalmente diferente. Quem menciona este diálogo garante tê-lo presenciado pessoalmente. Era um judeu da comunidade de Alexandria, a grande e laboriosa comunidade radicada no palácio, instalada no mais belo bairro, lamentava um anti-semita empedernido como o gramático Apião, um bairro destinado aos judeus, dizia-se, pelo próprio Alexandre. Perfeitamente helenizada na língua e na cultura, essa empreendedora personagem soubera aproveitar-se de uma mimetização perfeita para entrar na corte e aí conquistar crédito e amizades. Um problema da sua comunidade, que lhe parecia muito agudo, era a utilização, então dominante, mas sempre combatida pelos ortodoxos, da língua grega nos ofícios da sinagoga. Podemos supor que conseguiu ser contratado, gozando na corte da protecção de correligionários ou simpatizantes, como adido à biblioteca. Do que escreve, deduzimos que soube manter oculta a sua ligação com a comunidade judaica, e que continuou a falar e escrever sobre os judeus como um povo interessante, mas diferente. Dos materiais de escrita e da confecção dos rolos fala com tal perícia e propriedade de linguagem que nos leva a imaginá-lo como zeloso e estimado diaskeuastés (curador de textos); portanto, sempre subindo na confiança de Demétrio e inspirador, junto a ele, da proposta respeitosamente insistente de também abrir as prateleiras da biblioteca do rei à lei judaica. Mas é exactamente isso: temos de imaginar, pelo menos em parte, na medida em que nosso autor fala muito pouco de si. Diz que seu nome é Aristeu e tem um irmão chamado Filócrates: dois nomes genuinamente gregos, mas que também serão usuais entre os judeus da diáspora, cada vez mais impregnados daquilo que os ortodoxos desdenhosamente chamavam de helenismo; que é amigo dos dois chefes da guarda pessoal de Ptolomeu, Sosíbio de Tarento e André; que presenciou, nas dependências da biblioteca, o diálogo entre Demétrio e o soberano; por fim, que participou da missão enviada por Ptolomeu a Jerusalém, para conseguir bons tradutores». In Luciano Canfora, A Biblioteca Desaparecida, 1986, Companhia das Letras, 1989, ISBN 978-857-164-051-1.

Cortesia da CdasLetras/JDACT