Cortesia
de wikipedia e jdact
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Os vaqueiros e os peões do interior escutavam-no em silêncio, intrigados,
atemorizados, comovidos; e assim o escutavam os escravos e os libertos dos
engenhos do litoral; as mulheres; os pais; os filhos de uns e de outros. Alguma
vez alguém, mas rara vez porque a sua seriedade, a sua voz cavernosa ou a sua
sabedoria os intimidava, o interrompia para esclarecer uma dúvida. Terminaria o
século? Chegaria o mundo a 1900? Ele respondia sem olhar, com uma segurança
tranquila e, frequentemente, com enigmas. Em 1900 se apagariam as luzes e
choveriam estrelas. Mas, antes, ocorreriam feitos extraordinários. Um silêncio
seguia a sua voz, no que se ouvia crepitar as fogueiras e o bordear de quão insectos
as chamas devoravam, enquanto os aldeãos, contendo a respiração, esforçavam de
antemão a memória para recordar o futuro. Em 1896 um milhar de rebanhos
correriam da praia por volta do sertão; e o mar viraria sertão, e o sertão mar.
Em 1897 o deserto se cobriria de pasto, pastores e rebanhos se mesclariam e a
partir de então haveria um só rebanho e um só pastor. Em 1898 aumentariam os
chapéus e diminuiriam as cabeças e em 1899 os rios se tornariam vermelhos e um
planeta novo cruzaria o espaço. Havia, pois, que se preparar. Teriam que
restaurar a igreja e o cemitério, a mais importante construção depois da casa
do Senhor, pois era sala de espera do céu ou do inferno, e teriam que destinar
o tempo restante ao essencial: à alma. Acaso partiriam o homem ou a mulher lá
com saias, vestidos, chapéus de feltro, sapatos de cordão e todos esses luxos
de lã e de seda que não vestiu alguma vez o Bom Jesus? Eram conselhos práticos,
singelos. Quando o homem partia, falava-se dele: que era santo, que tinha feito
milagres, que tinha visto a sarça ardente no deserto, igual a Moisés, e que uma
voz lhe tinha revelado o nome impronunciável de Deus. E se comentavam os seus
conselhos. Assim, antes de que terminasse o Império e depois de começada a
República, os aldeãos de Tucano, Soure, Amparo e Pombal, foram escutando-os; e,
mês a mês, ano a ano, foram ressuscitando de suas ruínas as igrejas do Bom
Conselho, de Geremoabo, de Massacará e do Inhambupe; e, segundo os seus
ensinos, surgiram taipas e nichos nos cemitérios de Monte Santo, de Entre Rios,
de Abadia e do Barracão; e a morte foi celebrada com dignos enterros no
Itapicurú, Cumbe, Natuba, Mocambo. Mês a mês, ano a ano, foram-se povoando de conselhos
as noites do Alagoinhas, Uauá, Jacobina, Itabaiana, Campos, Itabaianinha, Gerú,
Riachão Lagarto, Simão Dias. A todos pareciam bons conselhos e por isso, ao
princípio num, logo em outro e no final em todos os povos do Norte, ao homem
que os dava, embora o seu nome fosse Antonio Vicente e seu sobrenome Mendes
Maciel, começaram a chamá-lo o Conselheiro.
Uma
grade de madeira separa os redactores e empregados do Jornal de Notícias, cujo
nome destaca, em caracteres góticos, sobre a entrada, da gente que se chega até
ali para publicar um aviso ou trazer uma informação. Os jornalistas não são
mais de quatro ou cinco. Um deles revisa um arquivo embutido na parede; dois
conversam animadamente, sem jaquetas mas com colarinhos duros e gravatas-borboletas
de laço, junto a um calendário no que se lê a data, Outubro, segunda-feira, 2,
1896, e outro, jovem, desajeitado, com
grossos óculos de míope, escreve sobre uma carteira com uma pluma de ganso,
indiferente ao que ocorre em torno dele. Ao fundo, depois de uma porta de
cristais, está a Direcção.
Um homem com viseira e punhos postiços atende uma fila de clientes no mostrador
dos Avisos Pagos. Uma
senhora acaba de lhe alcançar um cartão. A caixa, molhando o indicador, conta
as palavras, Clisteres Giffoni// Curam as Gonorréias, as Hemorróides, as
Flores Brancas e todas as moléstias das Vias Urinarias// Prepara-as Madame A. De
Carvalho// Rua Primeiro de Março N.8, e diz um preço. A senhora paga,
guarda o troco e, quando se retira, quem esperava atrás dela adianta-se e
estira um papel à caixa. Vestido de escuro, com uma levita de duas pontas e um
chapéu-coco que denotam uso. Uma anelada cabeleira avermelhada lhe cobre as
orelhas. É mais alto que baixo, de largas costas, sólido, maduro. A caixa conta
as palavras do aviso, deixando deslizar o dedo sobre o papel. De repente,
enruga a testa, levanta o dedo e aproxima muito o texto aos olhos, como se temesse
ter lido mal. Por fim, olha perplexo ao cliente, que permanece feito uma estátua.
O caixa pestaneja, incómodo, e, por fim, indica ao homem que espere.
Arrastrando os pés, cruzando o local, com o papel balançando-se na mão, toca
com os nódulos o cristal da Direcção e entra. Uns segundos depois reaparece e
por gestos indica ao cliente que passe. Logo, retorna a seu trabalho. O homem
de escuro atravessa o Jornal de
Notícias fazendo soar os tacos como se calçasse ferraduras.
Ao entrar no pequeno despacho, lotado de papéis, periódicos e propaganda do
Partido Republicano Progressista, Um Brasil Unido, Uma Nação Forte, está
esperando-o um homem que o olha com uma curiosidade risonha, como a um insecto
estranho. Ocupa o único escritório, usa botas, um traje cinza, e é jovem,
moreno, de ares enérgicos. Sou Epaminondas Gonçalves, o Director do periódico,
diz, Adiante.
O
homem de escuro faz uma ligeira vênia e leva a mão ao chapéu, mas não o tira
nem diz uma palavra. Você pretende que publiquemos isto?, pergunta o Director,
agitando o papel. O homem de escuro assente. Tem uma barbicha avermelhada como
seus cabelos, e seus olhos são penetrantes, muito claros; sua boca larga está
franzida com firmeza e as narinas de seu nariz, muito abertas, parecem aspirar
mais ar de que necessitam. Caso não custe mais de dois mil réis, murmura num
português dificultoso É todo o meu capital». In Mario Vargas Llosa, A Guerra
do Fim do Mundo, 1981, Publicações dom Quixote, 2010, ISBN 978-972-204-392-2.
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PdomQuixote/JDACT