domingo, 5 de fevereiro de 2017

A Guerra do Fim do Mundo. Mario Vargas Llosa. «Ao entrar no pequeno despacho, lotado de papéis, periódicos e propaganda do Partido Republicano Progressista, Um Brasil Unido, Uma Nação Forte, está esperando-o um homem que o olha com uma curiosidade risonha»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Os vaqueiros e os peões do interior escutavam-no em silêncio, intrigados, atemorizados, comovidos; e assim o escutavam os escravos e os libertos dos engenhos do litoral; as mulheres; os pais; os filhos de uns e de outros. Alguma vez alguém, mas rara vez porque a sua seriedade, a sua voz cavernosa ou a sua sabedoria os intimidava, o interrompia para esclarecer uma dúvida. Terminaria o século? Chegaria o mundo a 1900? Ele respondia sem olhar, com uma segurança tranquila e, frequentemente, com enigmas. Em 1900 se apagariam as luzes e choveriam estrelas. Mas, antes, ocorreriam feitos extraordinários. Um silêncio seguia a sua voz, no que se ouvia crepitar as fogueiras e o bordear de quão insectos as chamas devoravam, enquanto os aldeãos, contendo a respiração, esforçavam de antemão a memória para recordar o futuro. Em 1896 um milhar de rebanhos correriam da praia por volta do sertão; e o mar viraria sertão, e o sertão mar. Em 1897 o deserto se cobriria de pasto, pastores e rebanhos se mesclariam e a partir de então haveria um só rebanho e um só pastor. Em 1898 aumentariam os chapéus e diminuiriam as cabeças e em 1899 os rios se tornariam vermelhos e um planeta novo cruzaria o espaço. Havia, pois, que se preparar. Teriam que restaurar a igreja e o cemitério, a mais importante construção depois da casa do Senhor, pois era sala de espera do céu ou do inferno, e teriam que destinar o tempo restante ao essencial: à alma. Acaso partiriam o homem ou a mulher lá com saias, vestidos, chapéus de feltro, sapatos de cordão e todos esses luxos de lã e de seda que não vestiu alguma vez o Bom Jesus? Eram conselhos práticos, singelos. Quando o homem partia, falava-se dele: que era santo, que tinha feito milagres, que tinha visto a sarça ardente no deserto, igual a Moisés, e que uma voz lhe tinha revelado o nome impronunciável de Deus. E se comentavam os seus conselhos. Assim, antes de que terminasse o Império e depois de começada a República, os aldeãos de Tucano, Soure, Amparo e Pombal, foram escutando-os; e, mês a mês, ano a ano, foram ressuscitando de suas ruínas as igrejas do Bom Conselho, de Geremoabo, de Massacará e do Inhambupe; e, segundo os seus ensinos, surgiram taipas e nichos nos cemitérios de Monte Santo, de Entre Rios, de Abadia e do Barracão; e a morte foi celebrada com dignos enterros no Itapicurú, Cumbe, Natuba, Mocambo. Mês a mês, ano a ano, foram-se povoando de conselhos as noites do Alagoinhas, Uauá, Jacobina, Itabaiana, Campos, Itabaianinha, Gerú, Riachão Lagarto, Simão Dias. A todos pareciam bons conselhos e por isso, ao princípio num, logo em outro e no final em todos os povos do Norte, ao homem que os dava, embora o seu nome fosse Antonio Vicente e seu sobrenome Mendes Maciel, começaram a chamá-lo o Conselheiro.
Uma grade de madeira separa os redactores e empregados do Jornal de Notícias, cujo nome destaca, em caracteres góticos, sobre a entrada, da gente que se chega até ali para publicar um aviso ou trazer uma informação. Os jornalistas não são mais de quatro ou cinco. Um deles revisa um arquivo embutido na parede; dois conversam animadamente, sem jaquetas mas com colarinhos duros e gravatas-borboletas de laço, junto a um calendário no que se lê a data, Outubro, segunda-feira, 2, 1896,  e outro, jovem, desajeitado, com grossos óculos de míope, escreve sobre uma carteira com uma pluma de ganso, indiferente ao que ocorre em torno dele. Ao fundo, depois de uma porta de cristais, está a Direcção. Um homem com viseira e punhos postiços atende uma fila de clientes no mostrador dos Avisos Pagos. Uma senhora acaba de lhe alcançar um cartão. A caixa, molhando o indicador, conta as palavras, Clisteres Giffoni// Curam as Gonorréias, as Hemorróides, as Flores Brancas e todas as moléstias das Vias Urinarias// Prepara-as Madame A. De Carvalho// Rua Primeiro de Março N.8, e diz um preço. A senhora paga, guarda o troco e, quando se retira, quem esperava atrás dela adianta-se e estira um papel à caixa. Vestido de escuro, com uma levita de duas pontas e um chapéu-coco que denotam uso. Uma anelada cabeleira avermelhada lhe cobre as orelhas. É mais alto que baixo, de largas costas, sólido, maduro. A caixa conta as palavras do aviso, deixando deslizar o dedo sobre o papel. De repente, enruga a testa, levanta o dedo e aproxima muito o texto aos olhos, como se temesse ter lido mal. Por fim, olha perplexo ao cliente, que permanece feito uma estátua. O caixa pestaneja, incómodo, e, por fim, indica ao homem que espere. Arrastrando os pés, cruzando o local, com o papel balançando-se na mão, toca com os nódulos o cristal da Direcção e entra. Uns segundos depois reaparece e por gestos indica ao cliente que passe. Logo, retorna a seu trabalho. O homem de escuro atravessa o Jornal de Notícias fazendo soar os tacos como se calçasse ferraduras. Ao entrar no pequeno despacho, lotado de papéis, periódicos e propaganda do Partido Republicano Progressista, Um Brasil Unido, Uma Nação Forte, está esperando-o um homem que o olha com uma curiosidade risonha, como a um insecto estranho. Ocupa o único escritório, usa botas, um traje cinza, e é jovem, moreno, de ares enérgicos. Sou Epaminondas Gonçalves, o Director do periódico, diz, Adiante.
O homem de escuro faz uma ligeira vênia e leva a mão ao chapéu, mas não o tira nem diz uma palavra. Você pretende que publiquemos isto?, pergunta o Director, agitando o papel. O homem de escuro assente. Tem uma barbicha avermelhada como seus cabelos, e seus olhos são penetrantes, muito claros; sua boca larga está franzida com firmeza e as narinas de seu nariz, muito abertas, parecem aspirar mais ar de que necessitam. Caso não custe mais de dois mil réis, murmura num português dificultoso É todo o meu capital». In Mario Vargas Llosa, A Guerra do Fim do Mundo, 1981, Publicações dom Quixote, 2010, ISBN 978-972-204-392-2.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT