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Não adoro
nem pau nem pedra, mas sim Deus que tudo governa
«(…)
Provavelmente viviam a culpabilidade da conversão. Mas não estavam sós, os laços
familiares e comunitários ainda permaneciam e nas datas sagradas fechavam os cortinados
e abriam os livros rezando ao Deus que amavam acima de tudo e a quem juravam
fidelidade eterna. Revelavam o segredo às crianças que cedo deixavam de o ser, impunham-lhes
o peso de um silêncio que as acompanharia para sempre. No seu desespero, aguardavam
ansiosamente por um salvador, o Messias tão desejado. Em 1528, aos dezoito anos
e já órfã do pai, Grácia casa-se com Francisco Mendes Benveniste, natural de Sória
em Castela, de onde veio, ainda criança, em 1492. Na medida do possível, os
judeus conversos casavam-se entre si para manter a tradição judaica de geração
em geração. Foi certamente, como era costume entre os marranos, um casamento duplo:
um primeiro casamento judaico em privado, seguido de um casamento católico. Conforme
a tradição judaica, a noiva terá ido primeiro ao banho ritual de purificação
espiritual, o mikvé, talvez existente na própria casa ou algures na
antiga judiaria, e ficado uma semana sem ver o noivo como manda a Lei. A cerimónia
propriamente dita ter-se-á realizado na sua própria casa ou na casa do noivo sob
o pálio tradicional, a hupá., símbolo do futuro lar do casal, após a assinatura
do contrato de casamento, a ketubá, através do qual o noivo se compromete
a cumprir todos os deveres conjugais, incluindo o sustento da sua futura mulher.
Sob o pálio, Grácia terá rodado sete vezes em torno de Francisco, em lembrança dos
sete dias da Criação, e no seu dedo indicador a aliança lembrar-lhe-á para
sempre a frase ritual do noivo: com este anel, és consagrada a mim conforme a
lei de Moisés e Israel. Terá Francisco no final quebrado um copo com o pé,
em sinal de luto pela destruição do Templo de Jerusalém, conforme o salmo Se
eu te esquecer, Jerusalém...? Provavelmente, porque essa é a tradição do final
de todo o casamento judaico, mas com cuidado para não ser ouvido pelos vizinhos.
Consumado o enlace judaico, teve lugar o casamento na igreja, possivelmente na capela
particular de Francisco ou na própria catedral, com todo o fausto devido às famílias
prestigiadas e poderosas que ambos representavam. Foi certamente um grande acontecimento
social com inúmeros convidados, provavelmente com representantes da própria corte,
e seguido de banquete sumptuoso, música e dança. Para a jovem Grácia terá sido
um teste difícil, o primeiro teste à sua capacidade de dissimulação pública que
será obrigada a praticar durante a maior parte da sua vida.
Amaria
ela o seu marido, Francisco? Esta é, com efeito, uma pergunta de hoje, não da
época. Mais do que o amor o importante era manter o património, a linhagem e, no
caso dos marranos, a tradição judaica. Há, no entanto, fortes indícios de que Grácía
tenha acompanhado activamente o marido no seu zelo religioso judaico, no apoio aos
seus correligionários, incluindo o esforço para impedir a instauração da Inquisição
(maldita) em Portugal. A sua
viva inteligência ter-lhe-á também permitido aprender rapidamente e até colaborar
com Francisco nos seus prósperos negócios». In Esther Mucznik, Grácia Nasi, A
judia portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino, A Esfera dos
Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-244-0.
Cortesia de
ELivros/JDACT