sábado, 25 de fevereiro de 2017

O Espião de João II de Portugal. Deana Barroqueiro. «E falavas tu que eles não matavam gente!, exclama Pêro em sanha. Diz-se que Timoja não consente mortes quando as presas se rendem sem combate»

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O corsário de Malabar
«(…) No zambuco a luta terminara a favor dos corsários e todos se imobilizam para assistir ao duelo daqueles dois homens tão diferentes, mas cujos corpos desenham movimentos simultâneos e precisos, em que cada gesto encontra a resposta no gesto adversário, como se fora mil vezes ensaiado. Lançam-se um contra o outro, pelejando como demónios, entrando e tirando-se, cometendo e defendendo, arredando-se apenas uns instantes para cobrar fôlego, ferindo-se de tantos golpes e tão amiúde que o sangue, misturando-se, lhes ensopa as vestes. Nos olhos de ambos, porém, a raiva cedera lugar à admiração.
Pêro leva já no corpo o cansaço dos combates anteriores, ao lado de Schaban, os braços carregados com a pesada espada de duas mãos começam a vacilar. Timoja sente alívio, por se achar também com poucas forças e temer uma perda de prestígio diante dos seus homens, por isso, num esforço inesperado salta e desfere um golpe na cabeça do falso mercador, que, apesar da surpresa, logra desviá-lo no último instante, mas não tão completamente que a ponta lhe não resgue a touca, abrindo-lhe uma larga ferida. Pêro da Covilhã dobra os joelhos e cai desacordado.
Quando recobra os sentidos, o escudeiro acha-se amarrado de pés e mãos, deitado no mesmo sítio onde travara o duelo com Timoja. Nota com surpresa que lhe puseram uma atadura à volta da cabeça para estancar o sangue e lhe cuidaram dos outros ferimentos. Schaban está a seu 1ado, consciente e com os golpes pensados. O capitão dos corsários, a poucos passos deles, dá ordens à sua chusma, que faz o conto das baixas de ambos os partidos, transporta os feridos para um recanto mais abrigado e 1ança os mortos ao mar. Os velhos, as mulheres e as crianças estão na coberta e entre os trinta e três passageiros e tripulantes que restam, Pêro avista o velho Mir Bubaka, que parece incólume.
Timoja nomeia o lugar-tenente que vai substituir o morto e os homens saúdam o novo oficial com aclamações e pancadas de lanças e zargunchos contra o tabuado do navio. Marakkar, um homem magro, de pele castanha curtida como couro e cara cheia de cicatrizes de velhas queimaduras, ergue a mão a pedir silêncio e ordena que lhe tragam um balde, sendo prontamente obedecido. Eis a primeira presa, grita o pirata, lançando mão ao jovem marinheiro que lhe está mais próximo e, atirando-o ao chão, com um só golpe de sabre, decepa-lhe a cabeça.
Um grito de horror solta-se das bocas dos prisioneiros ao mesmo tempo que o clamor de vitória dos corsários. Auxiliado por um sequaz, o lugar-tenente de Timoja soergue o corpo ainda em convulsões e recolhe no cubo de couro o sangue que jorra. Que o teu sangue nos traga fortuna!, diz, como se orasse. E nos dê boa viagem!, brada o coro dos piratas. O balde passa do zambuco para os paraus, cujas proas os homens untam com o sangue da vítima, por entre vivas dos companheiros. Quando capturam um navio, murmura Schaban, usam degolar o primeiro tripulante ou passageiro a que deitam a mão e pintam a proa dos seus barcos com o sangue para terem sorte.
E falavas tu que eles não matavam gente!, exclama Pêro em sanha. Diz-se que Timoja não consente mortes quando as presas se rendem sem combate, mas comanda uma chusma de corsários e, se não cumprir com as tradições, arrisca-se a um motim e a ser morto pelos seus próprios homens. Como vês, mantém-se à parte dos festejos. De facto, o capitão parece alheio ao comportamento da sua marinhagem, mais interessado em observar os dois prisioneiros e as suas reacções. Pêro sustenta-lhe o olhar, num desafio. Que quererá de nós? Por que motivo não estamos com os outros prisioneiros? Combatemos bem. Talvez nos reserve uma sorte diferente. Marakkar não está satisfeito. Segundo o inventário feito pelos seus homens, a sorte bafejara-os com uma rica presa, contudo não tinham achado ouro ou pedraria. Decerto esconderam as bolsas antes da abordagem, diz Timoja. Mercadores deste jaez não viajam de mãos a abanar. Tratai de os revistar e fazei-os falar». Deana Barroqueiro, O Espião de D. João II, na Demanda dos Segredos do Oriente e do Misterioso Reino do Preste João, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-258-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT