Cortesia
de wikipedia e jdact
O
Áugure
«(…)
Jura, então, que escondeu um segredo neste muro? Marco d’Oggiono coçava o
queixo, perplexo, enquanto olhava de novo o mural que o mestre pintava.
Leonardo da Vinci divertia-se com aqueles jogos. Quando estava de bom humor, e
nesse dia estava, era difícil encontrar nele o afamado pintor, inventor,
construtor de instrumentos musicais e engenheiro favorito do Mouro e aplaudido
em metade da Itália. Naquela fria manhã, o mestre tinha um olhar de menino
travesso. Mesmo ciente de que
contrariava
os frades, havia aproveitado a tensa calmaria que Milão vivia após a morte da princesa
para inspeccionar o seu trabalho no refeitório dos padres dominicanos. Estava
ali em cima, satisfeito entre apóstolos, montado num andaime de seis metros de
altura e pulando de tábua em tábua como um rapaz. Claro que há um segredo!,
gritou. Seu riso contagiante retumbou nas abóbadas vazias de Santa Maria delle
Grazie. Só precisa olhar com atenção minha obra e considerar os números. Conta!
Conta!, riu.
Mas,
mestre… Está bem, Leonardo balançou a cabeça condescendente, arrastando a
última sílaba a título de protesto. Vejo que será difícil ensiná-lo. Porque não
pega a Bíblia que está ali em baixo, junto à caixa de pincéis, e lê o capítulo
13 de João, a partir do versículo 21? Talvez assim você encontre a iluminação. Marco,
um dos jovens e belos discípulos do toscano, correu em busca do livro sagrado. Pegou-o
do atril que estava no canto junto à porta e avaliou. Devia pesar vários
quilos. Marco, com esforço, folheou aquele exemplar impresso em Veneza, de capa
de couro negríssimo e entalhes de cobre, até que o Evangelho de João se abriu à
sua frente. Era uma edição linda, com gravuras florais no cabeçalho, cheio de
letras góticas grandes e pretas. Dito isto, começou a recitar, comoveu-se Jesus
em espírito, e declarou: em verdade, em verdade vos digo que um de vós me há-de
trair. Os discípulos se entreolhavam, perplexos, sem saber de quem ele falava.
Ora, achava-se reclinado sobre o peito de Jesus um de seus discípulos, aquele a
quem Jesus amava. A esse, pois, fez Simão Pedro sinal, e lhe pediu: pergunta-lhe
de quem é que fala. Muito bem!, trovejou Leonardo no andaime. Olhe agora
para cá e diz: ainda não entende meu segredo?
O
discípulo negou com a cabeça. Marco já sabia que o mestre tinha preparado algum
truque. Mestre Leonardo, sua recriminação veio com um tom de franca decepção,
eu sei que está trabalhando nessa passagem evangélica. Não me revela nada de
novo mandando-me ler a Bíblia. O que eu quero é saber a verdade. A verdade? Que
verdade, Marco? Corre pela cidade o rumor de que o senhor demora tanto a
terminar esta obra porque quer ocultar algo importante nela. Substituiu a
técnica do afresco por outra, nova e mais demorada. Porquê? Eu vou-lhe dizer:
porque assim pode pensar melhor no que quer transmitir. Leonardo não se
alterou. As pessoas sabem de seu gosto pelos mistérios, mestre, e eu também
quero conhecê-los todos! Três anos a seu lado, preparando misturas e auxiliando
as suas mãos com os esboços e os papelões, acho que deveriam me dar alguma
vantagem sobre os outros, não? Sim, sim. Mas quem diz todas essas coisas, posso
saber? Quem, mestre? Todos! Até os frades desta santa casa param com frequência
seus discípulos e lhes perguntam! E o que comentam, Marco?, gritou novamente do
alto, cada vez mais divertido. Que seus Doze não são, na verdade, retratos dos
apóstolos, como os pintaria frei Filippo Lippi ou Crivelli; que eles
representam as doze constelações do zodíaco, que o senhor escondeu nos gestos
de suas mãos as notas de uma de suas partituras para o Mouro… Dizem de tudo,
mestre. E você? Sim, sim, você. Outro sorriso maroto tornou a iluminar o rosto
de Leonardo. Tendo-me tão perto, trabalhando todos os dias num salão tão
magnífico, a que conclusão você chegou? Marco ergueu a vista para a pintura na
qual o toscano dava alguns retoques com um pincel de cerdas finíssimas. A
parede norte estampava a representação da Última Ceia mais extraordinária que
Marco jamais vira. Ali estava Jesus, presente em carne e osso, no centro exacto
da composição. Tinha o olhar lânguido e os braços estendidos, como se estudasse
de soslaio as reacções de seus discípulos à revelação que acabava de lhes
fazer. A seu lado estava João, o amado, que escutava Pedro sussurrar. Afinando
os sentidos, quase se podia ver os lábios se moverem. Eram tão reais!
Mas
João já não estava recostado sobre o mestre como dizia o Evangelho. Dava até a impressão
de jamais ter estado. Do outro lado de Cristo, Filipe, o gigante, mantinha-se
em pé afundando suas mãos no peito. Parecia interrogar o Messias: acaso sou eu
o traidor, Senhor?. Ou Tiago, o Maior, que abria o peito qual guarda-costas,
jurando-lhe lealdade eterna. Ninguém lhe fará mal enquanto eu estiver por perto,
fanfarronava. E então, Marco? Você ainda não me respondeu. Não sei, mestre,
hesitou. Esta sua obra tem algo que me desconcerta. É tão, tão… Tão? Tão
próxima, tão humana, que me deixa sem palavras. Muito bem! Aplaudiu Leonardo,
secando as mãos no avental. Vê? Sem querer, você já está mais perto de meu
segredo. Não o entendo, mestre. E talvez nunca o consiga, sorriu. Mas escute o
que vou lhe dizer: tudo na natureza guarda algum mistério. As aves nos escondem
os segredos de seu voo, a água encerra com cuidado o porquê de sua
extraordinária força. E, se conseguíssemos fazer com que a pintura fosse um
reflexo dessa natureza, não seria justo incorporar nela essa mesma e enorme
capacidade de guardar informação? Cada vez que você admirar uma pintura, lembre-se
de que penetra na mais sublime das artes. Não fique nunca na superfície:
penetre a cena, movimente-se entre os seus elementos, descubra os ângulos
inéditos, olhe nos fundos, e assim alcançará seu verdadeiro significado.
Mas eu lhe aviso: é preciso ter coragem para isso. Não poucas vezes, o que
encontramos num mural como este dista muito do que esperávamos achar. Tenho
dito». In Javier Sierra, A Ceia Secreta, 2013, Editora Planeta, 2014, ISBN
978-854-220-327-1.
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