segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Grácia Nasi. Esther Mucznik. «O ambiente familiar de Grácia/Beatriz terá sido, sem dúvida, um exemplo de uma família marrana, cristã por fora, judia de alma»

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A matança de Lisboa que ocorreu lá em Lisboa…
Sobre esta pronunciou-se assim Léon Poliakov, historiador do anti-semitismo: uma política pérfida e desprovida de princípios, enquanto, com uma grande rigidez de princípios, os Reis Católicos ofereceram aos judeus a escolha entre o judaísmo no exílio e o cristianismo em Espanha. A escolha foi cruel; mas os Reis Católicos demonstraram, à sua maneira, mais respeito pela fé alheia. E Jerónimo Osório, humanista português do século XVI, considera que através de um acto iníquo e injusto cometido contra as leis e contra a religião, o rei permitiu que através da simulação religiosa, a religião fosse indignamente profanada. As diferentes atitudes dos Reis Católicos e do rei português reflectiam, antes de mais, situações internas e posições religiosas diferentes. Não há dúvida que, na sua perspectiva, os Reis Católicos demonstraram mais respeito pela fé alheia, e até pela sua própria, ao permitir a escolha entre a expulsão e a conversão. Mas não foram apenas os motivos religiosos que determinaram essa escolha. Em Espanha existia, desde as perseguições de 1391, um grupo importante de cristãos-novos, convertidos voluntária ou coercitivamente, que preenchia as mesmas funções económicas e financeiras do que os judeus, o que no limite permitia dispensar a presença judaica. Em contrapartida, em Portugal apenas existiam judeus. Não havia, antes das conversões de 1497, um número significativo de cristãos-novos que pudessem assumir as mesmas funções desempenhadas pelos judeus. Terá sido provavelmente esse o principal motivo da diferença de políticas entre Espanha e Portugal, nomeadamente da política manuelina de não deixar partir os judeus, convertendo-os à força.

Não adoro nem pau nem pedra, mas sim Deus que tudo governa
Entre os convertidos, encontrava-se a família de Grácia, assim como a do seu futuro marido Semah Benveniste, aliás Francisco Mendes. Grácia tinha três irmãos: Brianda, Guiomar e Aires Luna. Como acima referimos, Luna era o nome de baptismo do pai Álvaro Luna. Mas sobre a sua infância e adolescência não há nenhuma informação. Podemos então dar largas à imaginação: vemos uma menina viva e inteligente, com uma educação esmerada, relativamente protegida por uns familiares marcados pela tragédia das expulsões e das conversões, uma menina de semblante um pouco grave cuja sensibilidade a faz intuir o medo e o sofrimento da dissimulação; vemos uma menina que muito cedo sabe que não se chama Beatriz, mas sim Grácia, ou antes que se chama as duas coisas; que muito cedo aprende a distinguir o que tem de esconder e o que pode ou, aliás, deve mostrar; uma menina em cuja casa aprende a ser fiel à religião antiga à qual se entregará apaixonadamente durante toda a vida. Uma casa onde certamente também aprendeu o significado da palavra solidariedade para com os seus irmãos de infortúnio.
O ambiente familiar de Grácia/Beatriz terá sido, sem dúvida, um exemplo de uma família marrana, cristã por fora, judia de alma. Respeitavam o Sbabat, na medida do possível, abstinham-se dos alimentos proibidos, provavelmente comiam pão ázimo na Páscoa e jejuavam no Yom Kipur, o Dia do Perdão. Ao mesmo tempo, iam à igreja, baptizavam os filhos, casavam pela religião cristã, enterravam os seus mortos em cemitérios cristãos, tinham cruzes e até imagens religiosas nas suas paredes. Mas ao entrar na igreja talvez marcassem a sua reserva mental repetindo baixinho, como tantos outros marranos: não adoro nem pau nem pedra, mas sim Deus que tudo governa». In Esther Mucznik, Grácia Nasi, A judia portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-244-0.

Cortesia de ELivros/JDACT