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A
matança de Lisboa que ocorreu lá em Lisboa…
Sobre
esta pronunciou-se assim Léon Poliakov, historiador do anti-semitismo: uma política
pérfida e desprovida de princípios, enquanto, com uma grande rigidez de princípios,
os Reis Católicos ofereceram aos judeus a escolha entre o judaísmo no exílio e o
cristianismo em Espanha. A escolha foi cruel; mas os Reis Católicos demonstraram,
à sua maneira, mais respeito pela fé alheia. E Jerónimo Osório, humanista
português do século XVI, considera que através de um acto iníquo e injusto
cometido contra as leis e contra a religião, o rei permitiu que através da
simulação religiosa, a religião fosse indignamente profanada. As diferentes
atitudes dos Reis Católicos e do rei português reflectiam, antes de mais, situações
internas e posições religiosas diferentes. Não há dúvida que, na sua perspectiva,
os Reis Católicos demonstraram mais respeito pela fé alheia, e até pela sua própria,
ao permitir a escolha entre a expulsão e a conversão. Mas não foram apenas os motivos
religiosos que determinaram essa escolha. Em Espanha existia, desde as perseguições
de 1391, um grupo importante de cristãos-novos, convertidos voluntária ou
coercitivamente, que preenchia as mesmas funções económicas e financeiras do que
os judeus, o que no limite permitia dispensar a presença judaica. Em contrapartida,
em Portugal apenas existiam judeus. Não havia, antes das conversões de 1497, um
número significativo de cristãos-novos que pudessem assumir as mesmas funções desempenhadas
pelos judeus. Terá sido provavelmente esse o principal motivo da diferença de políticas
entre Espanha e Portugal, nomeadamente da política manuelina de não deixar
partir os judeus, convertendo-os à força.
Não adoro
nem pau nem pedra, mas sim Deus que tudo governa
Entre
os convertidos, encontrava-se a família de Grácia, assim como a do seu futuro marido
Semah Benveniste, aliás Francisco Mendes. Grácia tinha três irmãos: Brianda, Guiomar
e Aires Luna. Como acima referimos, Luna era o nome de baptismo do pai Álvaro
Luna. Mas sobre a sua infância e adolescência não há nenhuma informação. Podemos
então dar largas à imaginação: vemos uma menina viva e inteligente, com uma educação
esmerada, relativamente protegida por uns familiares marcados pela tragédia das
expulsões e das conversões, uma menina de semblante um pouco grave cuja
sensibilidade a faz intuir o medo e o sofrimento da dissimulação; vemos uma
menina que muito cedo sabe que não se chama Beatriz, mas sim Grácia, ou antes que
se chama as duas coisas; que muito cedo aprende a distinguir o que tem de esconder
e o que pode ou, aliás, deve mostrar; uma menina em cuja casa aprende a ser fiel
à religião antiga à qual se entregará apaixonadamente durante toda a vida. Uma casa
onde certamente também aprendeu o significado da palavra solidariedade para com
os seus irmãos de infortúnio.
O ambiente
familiar de Grácia/Beatriz terá sido, sem dúvida, um exemplo de uma família
marrana, cristã por fora, judia de alma. Respeitavam o Sbabat, na medida
do possível, abstinham-se dos alimentos proibidos, provavelmente comiam pão
ázimo na Páscoa e jejuavam no Yom Kipur, o Dia do Perdão. Ao mesmo
tempo, iam à igreja, baptizavam os filhos, casavam pela religião cristã, enterravam
os seus mortos em cemitérios cristãos, tinham cruzes e até imagens religiosas nas
suas paredes. Mas ao entrar na igreja talvez marcassem a sua reserva mental repetindo
baixinho, como tantos outros marranos: não adoro nem pau nem pedra, mas sim
Deus que tudo governa». In Esther Mucznik, Grácia Nasi, A judia
portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino, A Esfera dos
Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-244-0.
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