segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Maria Adelaide. M. Teixeira-Gomes. «E quando se despediu, de manhã, foi novamente inspeccionar tudo, percebendo-se-lhe no olhar certa pena de deixar aquele cenário luxuoso, cuja beleza começava a apreciar»

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«(…) Eu habitava ainda então na casa paterna, onde tinha um vasto aposento inteiramente independente, com saída para a rua. Maria Adelaide apeteceu vir visitar-me, o que não fazia havia já bastante tempo. Dera-se ali a nossa entrevista definitiva e sempre que lá voltava era infalível a sua exclamação, embora a rir: foi aqui que eu me desgracei!... Encontrou tudo mudado: os móveis noutra disposição e alguns que ainda não conhecia; uma aparatosa estante nova de colunas torcidas; a poltrona regence brilhando sob uma réstia de sol em todo o esplendor do seu brocado persa; e no meu quarto de cama a lindíssima papeleira Luís XVI, muito vistosa nos seus enfeites de porcelana esmaltada e bronze doirado. Olhava para tudo com um ar de gato que estuda o recinto onde pela primeira vez o introduziram, mas disfarçando mal uma irrebatível expressão de despeito. Instintivamente comparava o arranjo e qualidade das minhas coisas com aquelas que tinha em casa e reputava formosíssimas: a cómoda de mogno coberta de croché, a cama de ferro pintado, cadeiras de palhinha frouxa, e sentia-se vexada com a evidente superioridade do meu mobiliário em que só agora reparara miudamente. Começou a mostrar mau humor, buscando, no decorrer da conversa, pequenas contradições que dessem azo a implicação e a queixas. Mas como eu me esquivasse a contendas pouco a pouco se lhe foi dissipando a irritação, pondo-se á vontade; já se sentava nas cadeiras de braços, procurando as posições mais cómodas e ia, sem amargura, gabando os móveis, os estofos, as madeiras.
Eu também quero uma cadeira assim, ia para a minha casa e hei-de tê-la, não é verdade, amigo?, quando tiver uma salinha melhor, porque realmente a minha é tão má... E quando mandará o demónio da velha (a senhoria) arranjar a casa? E inspeccionando as paredes: não é verdade, amigo, que aquele quadro está torto? Pois vai-se já pôr direito. Eu não posso ver, lá em casa, os meus quadrinhos tortos, nas paredes. A sua criada não arranja isto melhor agora. E dispunha os trastes com um sentimento de harmonia surpreendente, colocando, ao mesmo tempo, por cima das mesas e das estantes os bibelôs de forma a dar-lhes mais valor, mais relevo. Quis dormir comigo, no meu quarto, e durante a noite acordou-me para repetir: a gente também há-de ter um dia uma casa muito bem arranjadinha; não é verdade, amigo?, mas com coisas minhas, só minhas.
E quando se despediu, de manhã, foi novamente inspeccionar tudo, percebendo-se-lhe no olhar certa pena de deixar aquele cenário luxuoso, cuja beleza começava a apreciar, porém, boazinha, acrescentava: que eu nunca poderei ter coisas tão ricas, nem quero. Quero que o meu amiguinho as tenha. Lá na nossa casa coisinhas simples e asseadinhas. Dê cá um beijo; outro, outro... Até logo. Vá bem cedo, sim? Adeus... Tudo isto era dito sem o mais leve tom de pieguice, com uma naturalidade, uma espontaneidade, que me sensibilizou, e lembrando-me dos seus continuados e justificados queixumes dos tratos que sofria à mãe, e também do que havia de humilhante, vexatório, em sujeitar-me àquela promiscuidade, resolvi separá-la da família de modo que fizesse vida à parte, e logo nesse mesmo dia aluguei uma casa alta, em boa rua, com um grande quintal, destinando o primeiro andar a Maria Adelaide e os baixos à família». In Manuel Teixeira-Gomes, Maria Adelaide, 1938, Romances Portugueses, Obras Primas do século XX, Coordenação de Davis Mourão-Ferreira, Círculo de Leitores, Cortesia da Livraria Bertrand, 1986.

Cortesia de CLeitores/LBertrand/JDACT