quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

A Rocha Branca. Fernando Campos. «Haviam-no os criados trazido da batalha numa improvisada padiola de ramos de tamariz»

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«(…) Suspende Pítaco o discurso por momentos e, com facécia nos olhos e no ricto dos lábios, acrescenta: basta o arroto deles para deitar por terra um batalhão inimigo... Os circunstantes riem. O orador continua: não descuidaremos serviços auxiliares; sinais de fogo no alto das montanhas, os hemeródromos que correrão o dia inteiro a levar mensagens, os terapeutas de campanha para acudir aos feridos, os adivinhos para nos aconselharem... Os veteranos, com os efebos e os metecos, manter-se-ão a defender a ilha, peitos às armas esforçados, lanças em riste apercebidas contra o invasor ateniense. Defenderemos a nossa terra, as nossas mulheres, as nossas virgens, o nosso sangue, os nossos bens, o nosso pão, o nosso vinho... Avante, cidadãos! A hora é de heroísmo! Assim falou e logo crepitam aplausos a coroar-lhe as palavras voadas do experto peito. Está encontrado o general de Lesbos. Mitilene, cidade aristocrática e a mais importante da ilha, é, com a concordância de todas as outras, investida na direcção da defesa.
Por toda a parte se aparelha a guerra. No porto está pronta a armada, carros de batalha seguem os guerreiros por estradas e caminhos em direcção ao litoral. Estafetas correm com ordens e avisos às populações. Em Éreso, meu pai Escamandrónimo prepara os seus homens. A enorme casa resplandece de bronzes, ondeiam os brancos penachos de crinas de cavalo, brilham as cnémidas dos hoplitas, envolvem-se os dorsos com as couraças de linho novo, as cotas de malha da Lídia, empunham-se na esquerda os côncavos escudos, na direita o dardo potente, dos cinturões pendem espadas e punhais de Cálcis.
Fora das muralhas aguarda o exército. Escamandrónimo, rutilante em seus trajos de guerra, surge à porta de casa com nossa mãe e connosco. Lembrado da despedida de Heitor a Andrómaca, prefere contenção de palavras. Apenas diz, como o herói homérico: pobrezinha! Não atormentes o coração. Contra o destino nenhum mortal me poderá lançar ao Hades, beija a mulher, afaga-nos. Vá! Entra e dedica-te às tuas tarefas. A guerra é para os homens.
Cléis, os olhos em lágrimas, leva-nos para dentro. Ainda olho atrás. Ele desce, sai a porta da muralha a juntar-se aos guerreiros. Partem. Com seu exército meu pai vigia muralhas, porto, praia, habitações e campos. E, um dia, pelo meio da manhã, surge ao longe, no azul de mar e céu, a frota inimiga... Tinha eu seis anos, o meu choro regou os osso
s de meu pai. Haviam-no os criados trazido da batalha numa improvisada padiola de ramos de tamariz». In Fernando Campos, A Rocha Branca, Editora Objectiva, Alfaguara, 2011, ISBN 978-989-672-111-4.

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